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"Fui proibida de jogar com meninos", diz atacante do Corinthians

Gabi Nunes jogadora atacante do Corinthians feminino - Reprodução/Instagram
Gabi Nunes jogadora atacante do Corinthians feminino Imagem: Reprodução/Instagram

Nathália Geraldo

De Universa

12/12/2020 04h00

A atacante do Corinthians Gabi Nunes fez um dos gols que levou o time à conquista do Brasileirão feminino, no domingo passado. Como é comum entre as atletas, saiu para comemorar o feito de braços abertos pelo gramado. Depois, em uma entrevista na beira do campo, chorou: e a imagem de Gabi, 23 anos, emocionada ao se lembrar de sua trajetória até aquele momento ganhou as redes sociais.

Artilheira do Campeonato Paulista 2020, com 11 gols até agora, ela joga a final pelo Corinthians neste domingo (13) contra o Ferroviária, em Araraquara, às 11 horas.

Gabi vem de uma família de jogadores de futebol. Mãe, tia, pai e irmão mais velho também já estiveram entre as quatro linhas — mas, mesmo depois de ter jogado em times só de meninos e de ter sido proibida de participar de campeonatos com eles, foi Gabi que alçou a carreira profissional no esporte.

"Minha tia fala que não tinha tanto apoio da família como eu tenho hoje. Se hoje já é difícil, imagine antigamente", diz. "Minha mãe jogava mais por brincadeira, no clube que a gente frequenta. Assisti uma vez ela jogando com outras mulheres".

Gabi Nunes - Corinthians Futebol Feminino/Flickr - Corinthians Futebol Feminino/Flickr
Imagem: Corinthians Futebol Feminino/Flickr

Após um dia de treino, seguido de banho e janta (tal qual os tweets antigos de Neymar), Gabi conversou por videochamada com Universa, na quarta-feira (9). Ela conta que o jogador do PSG é uma de suas inspirações na profissão, ao lado de Cristiane e Erika, com quem ela joga no Corinthians atualmente. "Quando eu subi para o profissional, na equipe de base do Centro Olímpico, elas estavam lá. São minha referência e me ajudaram de perto".

Marta Silva, a melhor do mundo, também está no rol das atletas que a jovem admira. Foi pelas mãos dela, aliás, que Gabi recebeu a Chuteira de prata da Fifa, ao ter ficado como vice-artilheira do Mundial sub-20, em 2016 (ela marcou cinco gols em quatro jogos).

O apoio da família

A jogadora conta que sua escalada para o futebol profissional contou com o apoio do pai e do irmão, que passaram a treiná-la quando ela ainda era criança. A vontade de jogar bola, aliás, veio de acompanhar o irmão mais velho nos treinos. "Um dia para o meu pai me deixar jogar futebol e ele me colocou numa escola perto de casa, no Grêmio Filsan [escolinha de futsal]. Mas, o foco sempre era meu irmão.

Enquanto ele jogava, eu estava treinando no futsal, no clube Guapira [na Zona Norte de São Paulo], na rua. E eu jogava com os meninos.

Foi nesta época que Gabi enfrentou um das primeiras dificuldades por ser mulher. "Em um momento, fui proibida de jogar com eles. Lembro até hoje que meu técnico foi em casa para contar e eu chorei muito, porque eu adorava jogar. Era por Federação, e acabaram me impedindo porque era só para meninos".

Gabi Nunes - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Gabi em foto publicada no Instagram da época em que jogava no Centro Olímpico
Imagem: Reprodução/Instagram

Depois, Gabi passou a jogar no Macabi, na Zona Norte de São Paulo. O time era só de mulheres, mas de idades diferentes. "Eu tinha uns dez anos e jogava com mulheres de 40". Foi quando entrou nas categorias de base do Centro Olímpico de São Paulo, de formação de meninas, que "a coisa ficou séria". "Meu pai treinava meu irmão e, a partir dali, os dois começaram a me treinar. Sou grata a eles por terem acreditado em mim".

Machismo e confiança no trabalho

Se o machismo atinge as mulheres que estão na torcida de times masculinos e na cobertura esportiva, também atravessa a vida daquelas que decidem sair da arquibancada e partir para uma carreira profissional. A atacante comenta que estar em ambientes em que só homens jogavam já foi motivo para que ela e companheiras do esporte sofressem com preconceito de gênero.

"Teve uma época em que eu e algumas meninas do Centro Olímpico íamos muito jogar na quadra do Parque Ibirapuera, porque não éramos profissionais. A gente montava nosso time e falava: 'Estamos de próximo'. Só tinha homem, mais velhos. E a gente via o olhar deles. Um dia, a gente jogou, o que já era difícil, porque tinha um ou outro que apoiavam, e ganhou os jogos contra os homens.

No final, eles não aceitaram que a gente ganhou deles, deu briga. Diziam: 'Não era para vocês estarem aqui'. Infelizmente, isso é muito natural e queria que mudasse, porque mulher é para estar onde ela quiser.

Gabi Nunes - Corinthians Futebol Feminino/Flickr - Corinthians Futebol Feminino/Flickr
Atacante do Corinthians, Gabi começou a jogar em escolinha de futsal aos 7 anos, em time de meninos
Imagem: Corinthians Futebol Feminino/Flickr

Para "ter a mente boa" e conseguir entregar resultados dentro de campo, diz a jogadora, ela dribla o pensamento de "será que sou capaz" com sessões de terapia oferecidas pelo Corinthians. "Por sermos atletas, acontece de termos alguns pensamentos na carreira sobre se somos capazes, se vamos chegar onde queremos. Isso a gente passa por cima, porque temos psicóloga aqui no clube que nos ajuda a manter o foco e a confiança".

O choro e as lesões

Em julho de 2019, Gabi Nunes sofreu uma lesão no LCA [Ligamento Cruzado Anterior], pela terceira vez. Na época, escreveu nas redes sociais sobre "voltar ainda mais forte". "Muitas vezes não entendemos e nunca vamos entender o por que de tudo isso, mas enfrentarei igual enfrentei as outras pra poder voltar ainda mais forte. (...) Não sei os propósitos que Deus quer fazer na minha vida, mas um dia a gente entende e sei que minha história vai transformar vidas".

A recuperação e ter voltado a estar com as companheiras de clube em campo, na conquista do Brasileirão, foram o motivo do choro ao falar sobre a vitória.

"Aquele choro foi de alívio, porque três lesões não são fáceis. Poder voltar, ter feito gol, estar com as meninas dentro do campo...Deu tudo certo. Eu batalhei bastante para voltar no meu melhor, porque é muito difícil voltar física e mentalmente bem. Precisei e tive o respaldo do Corinthians, dos médicos, da minha família e dos meus amigos".


O irmão, Roberto Nunes da Silva Junior, foi a que incentivou a não desistir da fisioterapia. "Sempre chegava um pouco emburrada, porque eu estava no limite. Minha mente estava cansada e eu não podia fazer o que eu amo, que era estar no campo. Então, ele falava que era um momento difícil, e que ia passar. E passou. A final do Brasileiro foi a prova disso".

Mulheres precisam de espaço e união

Uma pesquisa do IBGE publicada em 2017 mostrou que o futebol era a modalidade esportiva mais praticada no Brasil, por 15,3 milhões de pessoas. Desse total, apenas 5,5% eram mulheres. E a disparidade, claro, avança para o futebol profissional — só em setembro deste ano a CBF anunciou que vai equiparar salários para homens e mulheres nas seleções.

A Copa do Mundo feminina de 2019, por sua vez, deu a projeção que as jogadoras do Brasil merecem. Mas ainda falta muito, diz Gabi.

"Houve uma evolução e estamos pouco a pouco ganhando nosso espaço. O futebol feminino tem visibilidade boa, a gente vê, por exemplo, que as TVs [dos clubes] estão transmitindo os jogos, já que não pode público agora, e tendo boa audiência. É um futebol que está crescendo muito. Espero que a gente consiga não só ser igual [ao futebol masculino], mas chegar ao nível que o futebol feminino merece".

A união das mulheres para acabar com a desigualdade de gênero e pelo fim das opressões, aliás, extrapola os gramados. Até por isso, Gabi Nunes comenta que acompanhou o caso Robinho, que teve condenação em segunda instância, e "sabe que isso é uma coisa muito séria".

Em novembro, aliás, o Corinthians fez uma ação com as jogadoras depois de vir à tona mais detalhes sobre o caso Mari Ferrer. "O Corinthians fez postagem e ações sobre isso, para que as mulheres não tenham medo de se posicionar sobre a violência, tanto dos maridos que batem nelas, quanto a sexual. A gente luta para que as mulheres se posicionem. São coisas que nos machucam, e temos que estar unidas para vencer esse mal e cortá-lo pela raiz".

Corinthians - Corinthians Futebol Feminino/Flickr - Corinthians Futebol Feminino/Flickr
Em novembro, no Campeonato Paulista, o time entrou com camiseta sobre violência contra mulher: "Normal para quem?". Gabi está na ponta, à esquerda
Imagem: Corinthians Futebol Feminino/Flickr

Vida fora do campo e sonhos

No meio da rotina de treinos e jogos, Gabi Nunes diz que tenta manter uma rotina de beleza, "meus pais são cabeleireiros, então é uma vantagem", e aproveita para passear em família, com os cachorros e os priminhos. Entre os sonhos, além de "terminar 2020 zerada de lesões", está ir para um time fora do Brasil, e a jogar uma Copa do Mundo e Olimpíadas pela seleção brasileira.

"Mais para frente, conseguir ter uma família, com tudo estruturado, minha casa, meus cachorros. Está longe ainda, meu foco está mais no futebol com os planos de jogar fora e lutar pelo título de melhor jogadora do mundo, um dia".