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Bailarina acusa companhia alemã de racismo e de forçá-la a usar pó de arroz

A bailarina francesa Chloé Anais Lopes Gomes - Reprodução/Instagram
A bailarina francesa Chloé Anais Lopes Gomes Imagem: Reprodução/Instagram

Anahi Martinho

Colaboração para o UOL, em São Paulo

10/12/2020 15h02

A primeira bailarina negra a fazer parte do balé nacional da Alemanha, o Staatsballett de Berlim, diz ter sido vítima de racismo na instituição. A francesa Chloé Anais Lopes Gomes, de 29 anos, afirma que uma professora a perseguiu e discriminou durante dois anos, a ponto de forçá-la a passar maquiagem branca na pele para estrear no espetáculo "O Lago dos Cisnes".

Ela afirma ainda que a instituição foi conivente com as situações de racismo e que tentaram demiti-la quando ela denunciou internamente o que vinha sofrendo.

Os advogados de Chloé conseguiram reverter a demissão, mas sua agressora continua trabalhando na companhia, onde tem cargo vitalício. "Nos cruzamos todos os dias nos corredores", contou a bailarina ao UOL.

Filha de cabo-verdianos e nascida na França, Chloé entrou no Staatsballett em 2018 e foi a primeira mulher negra a trabalhar na companhia nacional de dança alemã, uma das mais prestigiadas do mundo.

"Era meu sonho entrar nessa companhia, é uma das melhores do mundo, tem bailarinos do mundo inteiro. Nunca esperava viver isso lá dentro. Eu morei na Rússia e nunca passei por isso lá", disse ela, que estudou no balé Bolshoi, o mais importante e tradicional do mundo.

Em entrevista ao UOL, Chloe relatou que foi perseguida durante dois anos pela mestra. "Ela fazia piadas racistas o tempo todo. Fiquei muito estressada, tive depressão e dores no estômago. É muito difícil manter a sanidade quando alguém fica o tempo todo te colocando para baixo", contou.

"Ela ficava o tempo todo me corrigindo, dizendo que eu estava fora da fileira, mas eu sabia que não estava. Não que eu não suporte críticas, mas estamos falando de coisas básicas que você aprende com três anos de idade no balé", disse Chloe.

Pó de arroz

As perseguições culminaram na estreia do clássico "O Lago dos Cisnes". A mestra ordenou que todos os bailarinos usassem pó de arroz para que o corpo de baile ficasse homogêneo no palco.

"É comum nesse tipo de repertório todos os bailarinos usarem pó de arroz. Mas você nunca pede a um bailarino negro que use maquiagem branca. Isso não se pede. Eu disse a ela: 'não vou ficar branca, não sou branca'", contou Chloe. A mestra, então, teria replicado a ela que passasse mais maquiagem.

"Ficou horrível. Minha pele ficou cinza-esverdeada. Simplesmente não consegui acreditar que eles não poderiam aceitar a ideia de ter um cisne negro", relatou.

O espetáculo, escrito em 1876 por Piotr Tchaikovsky, tem um subtexto muitas vezes interpretado como racista. A história versa em cima de um triângulo amoroso envolvendo Odette, a princesa que é transformada em cisne branco, e Odile, a bruxa que se metamorfoseia em cisne negro. A bailarina Chloé fazia parte do coro de cisnes.

Demissão

As perseguições se agravaram em janeiro deste ano, quando o co-diretor artístico da companhia, Johannes Öhman, que protegia Chloé na instituição, foi subitamente desligado. "Sob a direção do Sr. Oman eu estava muito feliz, ele nunca reclamou do meu trabalho. Em janeiro ele deixou a companhia e eu me senti sozinha. Logo depois fui demitida", relata.

"Fiquei surpresa, foi incompreensível, não esperava isso. Estava elencada para dois espetáculos. Disseram que eu não me enquadro na companhia, que eu não sou 'musical', como se o motivo fosse minha competência, mas eu sei que não é. E ainda disseram que lamentavam muito o que aconteceu comigo, mas que esse não era o motivo da demissão", contou Chloé.

Chloé afirma que tem recebido muitas mensagens de apoio de colegas, de bailarinos de toda parte do mundo e até de pessoas desconhecidas nas redes sociais. Mas que, apesar de todo o apoio, ainda se sente desrespeitada pela companhia, que até hoje não demitiu a professora.

"Sou muito sortuda de ter a mídia ao meu lado, de ter muitos colegas ao meu lado, tenho recebido muito apoio nas redes sociais. Mas a verdade é que nada aconteceu até agora. Ela continua trabalhando lá. Isso é inaceitável", afirma.

"Na França isso jamais aconteceria. Racismo não é brincadeira, especialmente em instituições importantes. A pessoa seria demitida se fizesse isso. Essa pessoa não pode ser mestra de balé, isso depõe contra a reputação da companhia. Algumas pessoas têm poder demais e isso também deveria mudar. Quando alguém é racista, tem que ser punido. Racismo é crime, mas muitas pessoas não entenderam isso até hoje", conclui.

Outro lado

O Staatsballett de Berlim publicou um comunicado sobre o caso, afirmando que fará uma investigação interna.

Temos mais de 90 bailarinos de várias partes do mundo. Como companhia, tínhamos a impressão que a diversidade por si só nos faria sensíveis a questões de racismo e discriminação, mas estávamos errados. O racismo estrutural é societário e afeta a todos. O comportamento discriminatório que foi denunciado em nossa instituição nos comove profundamente e mostra a necessidade de ferramentas e conhecimento para lidar com essas questões e fazer mudanças profundas.

Estamos realizando uma investigação com apoio de especialistas independentes sobre qualquer comportamento discriminatório dentro de nossa empresa. Qualquer forma de discriminação e racismo em nossa empresa é inaceitável. Desde que nossos ex-diretores artísticos, Sasha Waltz e Johannes Öhman, deixaram a empresa abruptamente na última temporada, nossa empresa está em um estado de transição. Considerando as conversas que surgiram nas últimas semanas, agora vemos isso como uma oportunidade de reestruturar a empresa. É nossa prioridade promover um clima de trabalho em que todos os funcionários sejam incentivados a se manifestar assim que ocorrerem transgressões de qualquer tipo. Como instituição estatal, não podemos ser parte do problema; devemos dar o exemplo.

Outro ponto importante inclui a revisão do repertório da nossa empresa para descobrir maneiras desatualizadas e discriminatórias de atuação, bem como questionar e reavaliar nossas tradições de longa data. Estamos cientes de que a profissão do balé marginalizou as pessoas não-brancas ao longo da história. No entanto, é nosso dever artístico ser um espelho da nossa sociedade, e nosso repertório deve ser um farol artístico que o reflita em toda a sua diversidade.