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"Cultura do assédio mudará quando vítima não for julgada", diz MeToo Brasil

A advogada Isabela Del Monde - Arquivo pessoal
A advogada Isabela Del Monde Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

06/12/2020 04h00

O ambiente corporativo caminha para uma realidade em que o enfrentamento a questões como assédio, racismo e LGBTfobia deverá ter tanto peso quanto a meta de lucros do semestre. Para isso, porém, é necessário que as empresas criem canais que acolham, em vez de julgar, as vítimas de situações como essas.

A avaliação é da advogada Isabela Del Monde, que atua com compliance cultural em empresas há três anos e fundou em junho passado a Gema Consultoria em Equidade, por meio da qual faz análise de riscos e de prevenção sobre temas como a cultura do assédio dentro das companhias.

Coordenadora do movimento #MeTooBrasil e uma das fundadoras da Rede Feministas de Juristas, Isabela conversou com Universa sobre o caso do humorista Marcius Melhem —que repercutiu intensamente nessa sexta-feira (4) após reportagem da revista Piauí. Além de detalhes dos abusos que teriam sido cometidos pelo agora ex-diretor contra colegas de elenco —especialmente a também humorista Dani Calabresa—, o texto abordou condutas da TV Globo no sentido de ter tentado mais acobertar Melhem do que, necessariamente, acolher as vítimas.

"No caso concreto da TV Globo, a impressão é que houve ali o reforço de um pacto: 'A gente não aborda isso, você [Melhem] sai desse jeito...' É como se tivesse sido feito mais um esforço de preservação da reputação dele do que algo que de fato amparasse e desse centralidade a essas vítimas."

Confira, seguir, a entrevista da advogada e consultora.

Os detalhes revelados pela reportagem da revista Piauí causaram bastante comoção, sobretudo, em mulheres. Não apenas pelo volume de fontes ouvidas [43, ao todo] pela revista corroborando práticas de abuso, mas especialmente pela maneira como a TV Globo tratou o episódio. Qual a sua avaliação a respeito da abordagem da empresa sobre essa situação?

Acredito que o grande problema que vemos nesse caso é que a Globo não conseguiu compreender que é possível você garantir tanto o acolhimento da vítima quanto um processo de investigação que também garante direitos do acusado. A empresa seguiu produzindo a falsa dicotomia do ou você acolhe a vítima, ou garante direitos em justa investigação do acusado —quando, na realidade, é possível fazer as duas coisas. Há, inclusive, metodologias específicas para isso que, me parece, não foram utilizadas.

O que poderia ter sido feito nesse caso, por exemplo, e não foi?

O que me parece é que a Globo tomou como prática um antigo método de simplesmente afastar o acusado sem dar o devido acolhimento e encaminhamento para as vítimas. E a gente sabe que o grande problema nisso tudo é a cultura do estupro, uma cultura que não será transformada com o mero desligamento do agressor da vez: vão vir outros homens, outras pessoas com a mesma cultura de assédio, e isso vai continuar naquele espaço.

É preciso haver investimento em uma transformação cultural e em haver equidade no centro da cultura organizacional. É muito importante que o compliance das empresas, quando lida com essas questões, tenha em mente aspectos como as dinâmicas de poder que envolvem as partes —de gênero, raça, hierarquia. É um grande equívoco tratar as partes como se fossem materialmente iguais, sendo que uma parte, em geral, tem mais poder que a outra seja porque é chefe, homem, branco, ou tudo isso junto.

É muito importante que o processo de apuração interna leve em consideração a dinâmica de poder, o que afeta uma vítima que vai denunciar, quais os medos que perpassam a vida dela: o medo da estigmatização social, o medo de não ser acreditada, de receber represálias e perseguição? Ter uma escuta empática e ter consideração dos impactos do trauma de medos de uma violência sexual não significa atuar de maneira parcial em relação à vítima, mas, sim, conduzir um trabalho com base em pesquisas e dados.

Em que outros pilares de atendimento à vítima as empresas deveriam se nortear?

A empresa precisa ter um atendimento trauma-informado, ou seja, precisa saber os efeitos dessa violência e aprender a reconhecer os sinais do trauma no comportamento da vítima. No momento em que se sofre a violência ou mesmo depois, o cérebro muda seu funcionamento, pois o que passa a ter destaque são as reações involuntárias que implicam até mesmo não conseguir reagir, fugir ou se defender de uma situação de violência. Muitas vítimas têm como principal reação a imobilidade, uma paralisia, algo que elas não conseguem controlar.

É muito importante que quem prestar atendimento às vítimas leve em consideração que houve um trauma e que isso tem implicações. E não se pode interpretá-las pelo senso comum. Por exemplo: a mulher pode até relatar que a violência aconteceu em um sábado, e, posteriormente, dizer que, na verdade, foi em uma sexta-feira. Se você faz um trabalho trauma-informado, sabe que essa confusão é normal, esperada. Mas, se isso não é levado em consideração, o trauma, expressado em uma confusão de memória, pode ser encarado como uma mentira. Por isso é importante que qualquer trabalho seja calcado na pesquisa sobre o trauma, a fim de não se reforçarem mitos do senso comum a respeito do que seria o comportamento correto de uma vítima de violência sexual.

Um incômodo que ficou para as vítimas da situação envolvendo o humorista da TV Globo, de acordo com a reportagem da revista Piauí, é que a empresa não foi clara sobre os motivos do afastamento de Melhem...

Não é para ser surpresa que uma situação dessas passará por uma apuração. Isso deveria estar nas regras de conduta de qualquer empresa. E o pilar de justiça e equidade reforça a confiança no sistema de compliance e o senso de valor de todas as pessoas envolvidas. Isso não esteve presente no processo da Rede Globo. Além disso, um dos aspectos muito importantes ali foi a ausência de transparência. Embora seja, sim, necessário e correto preservar o sigilo e privacidade das partes envolvidas, é possível e necessário também que se dê uma resposta à questão estrutural que envolve essa violência.

O que as empresas precisam fazer, portanto, em casos do tipo?

Dizer ao fim de uma investigação interna que alguém foi desligado nessas circunstâncias não implica em quebra de sigilo, mas em trazer transparência ao resultado de uma apuração. A Globo poderia ter falado que Melhem foi temporariamente afastado para que as investigações pudessem ser feitas da maneira mais idônea possível. Se o processo de apuração interna traz provas da violência relatada —e, nesse caso, havia muitas provas, como mensagens de texto, áudios, vídeos, testemunhas, além da palavra das vítimas—-, e se o resultado final é de que houve a conduta que foi denunciada, é possível que a companhia informe que houve desligamento do funcionário porque ele violou as regras de conduta da empresa. Se é uma empresa que tem regras claras anti-assédio, não é para ser surpresa que o assediador seja desligado. O mesmo vale em caso de corrupção: hoje várias empresas têm uma série de regras de conduta a respeito disso, e quando é denunciada e constatada a conduta, o compliance desliga o colaborador. Por que as empresas têm essa regra anticorrupção, mas não têm as regras anti-assédio?

Ou seja: demitir, simplesmente, também pode gerar frustração em quem busca ser reparado.

Sim. E a Globo simplesmente assumiu que, se estivesse demitindo, seria suficiente para a resolução do problema. Mas isso não contemplou a reparação das vítimas. Quando a vítima vai reportar um caso desses, a principal preocupação dela é: "Será que vão acreditar em mim?' A empresa não precisa necessariamente acreditar em tudo, mas tem que demonstrar de todas as formas possíveis o quanto acha importante a coragem da pessoa em falar sobre o caso. É dizer: 'Muito obrigada por você nos dar a chance de melhorar nossos serviços, por você confiar em nós. O que você está relatando é intolerável.' Perceba que, em uma frase dessas, não se diz que é intolerável o que aconteceu ou não, mas o que está sendo relatado.

Não são raros os casos de mulheres que preferem não falar abertamente sobre a violência sofrida temendo retaliações ou perseguições dentro e fora do ambiente de trabalho. No caso das mulheres que acusaram Melhem, parece simbólico que elas tenham buscado uma advogada para expor publicamente o caso, e não elas próprias.

No caso concreto da TV Globo, a impressão é que houve ali o reforço de um pacto: 'A gente [empresa] não aborda isso, você [Melhem] sai desse jeito...' É como se tivesse sido feito mais um esforço de preservação da reputação dele do que algo que de fato amparasse e desse centralidade a essas vítimas. Tanto que elas designaram uma advogada para falar sobre elas. Qual o grande medo? A represália que sofrem fora. Toda essa cultura é reflexo do que a gente vê no mundo, e as organizações não estão em Marte: estão no Brasil, na América Latina, entraram dentro delas aspectos culturais que estão lá fora.

Como as empresas podem se sensibilizar a respeito da importância de combater o assédio?

São várias frentes. A primeira delas é a financeira. Há uma série de pesquisas que apontam que empresas com diversidade étnica, racial e de gênero são mais lucrativas. Porque, socialmente, casos de homens que cometem violência e parecem ser congratulados por isso, por exemplo, como o caso do Robinho [o jogador, condenado por estupro na Europa, foi recentemente recontratado pelo Santos; após ameaças de cortes de patrocínio, o clube voltou atrás na decisão], não estão mais sendo aceitos. Seja pelos patrocinadores ou pela própria sociedade. Já há fundos de investimento que só investem em empresas com mulheres em postos de liderança e com políticas anti-assédio. Da mesma forma como não se toleram empresas que não tenham práticas anticorrupção e de combate ao trabalho escravo.

Qual o futuro, na sua avaliação, do combate à cultura de assédio dentro das organizações empresariais?

Acredito que, daqui a poucos anos, teremos leis específicas que obriguem as empresas a ter políticas e códigos sobre isso, bem como a dar respostas satisfatórias a respeito. Nos mesmos moldes da lei anticorrupção focada nas empresas, teremos leis anti-assédio e antirracismo dentro de organizações. Já há empresas fazendo isso independentemente de ser lei.

É possível um setor de compliance, por exemplo, ajudar a combater isso internamente quando muitas vezes a própria estrutura das empresas conta com gestores que não dão, eles próprios, acolhida à vítima do assédio?

Esse é um aspecto bem importante de enfatizar, porque é o que parece ter acontecido no caso da Dani Calabresa. Ela foi falar com pessoas responsáveis sobre o que estava acontecendo, e o conselho foi: 'Vá fazer terapia". Fora o famoso 'canal formal' [de denúncia] que, na prática, não foi feito para funcionar. As pessoas são incentivadas pelos gestores, ouvidorias e equipes de compliance a ficarem quietas. Isso só leva a um caminho: a saída da pessoa daquela empresa. Por isso vemos mulheres que ficam nos empregos muito menos tempo do que os homens, porque, na verdade, elas são implicitamente expulsas desse espaço —que se torna tão violento, e com tantos gatilhos psicológicos e físicos, que chega um momento em que a pessoa avalia que é melhor sair para não ficar mais doente.

Não podemos tolerar a existência de canais meramente formais, que estão ali para cumprir uma tabela. Muita empresa ainda acha que vai resolver o problema da cultura do assédio com uma palestra. Isso é importante, mas há que se falar sobre o assunto permanentemente. E tem que haver orçamento para isso.

Que reações comuns você encontra à frente do seu trabalho de consultoria nas empresas?

É muito comum ainda falarem o 'tudo agora é assédio, mimimi', e aí você faz uma exposição de dados, relatos e mostra a essa pessoa o quanto aquela estrutura é prejudicial para ela mesma, e não só aos grupos que são vítimas. Essa cultura do estupro é muito perversa também para os homens. E é muito importante também que haja interesse, vontade e empenho das lideranças nesse processo de transformação. [Em criar] Um ambiente em que a mulher lésbica não tenha que agir como uma mulher hétero; em que uma mulher, para ocupar um cargo de chefia, não tenha que ser masculinizada para fazer valer sua autoridade. Um ambiente em que a mãe possa ser mãe, o pai possa ser pai, recebendo incentivos para se envolver na criação dos filhos. Felizmente, vemos uma expansão dessa percepção. Caminhamos para o momento em que a relevância de um negócio diga respeito também à maneira com que ele enfrenta assédio, racismo e LGBTfobia, pontos que contarão tanto quanto a meta de lucros no semestre. Mulheres, negros e LGBTs ascenderam e ocuparam um espaço. Agora, querem que esses espaços sejam também seguros.