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Casal de lésbicas luta para que ambas constem como mães no CPF dos filhos

Marcela e Melanie são mães dos gêmeos Bernardo e Iolanda, de dois anos - Reprodução/Instagram
Marcela e Melanie são mães dos gêmeos Bernardo e Iolanda, de dois anos Imagem: Reprodução/Instagram

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

24/11/2020 04h00

Dois anos depois de se tornar mãe dos gêmeos Bernardo e Iolanda, a escritora Marcela Tiboni percebeu em uma consulta ao CPF das crianças na Receita Federal, que não está registrada como mãe delas no sistema do órgão, submetido à Secretaria da Fazenda, do Ministério da Economia.

Em todos os documentos impressos emitidos para os pequenos até agora — certidão de nascimento, RG e CPF —, os nomes de Marcela e de sua mulher, a arquiteta Melanie Graille, aparecem no campo "filiação", sem distinção de gêneros. Ao entrar no site oficial do orgão, no entrando, Marcela viu um informação diferente. Ao inserir seu nome no campo "mãe", recebeu uma mensagem informando que os dados não eram correspondentes e só conseguiu acessar o CPF dos filhos usando o nome da esposa.

À Universa, Marcela conta que não conteve o choro ao ler a mensagem da Receita Federal dizendo que seu nome não consta como mãe dos gêmeos. E, ao relatar o caso nas redes sociais, começou a receber relatos de outros casais que perceberam o mesmo problema.

"Quando li 'Marcela não consta como mãe de Iolanda' e depois de Bernardo, olhei para a janela e comecei a chorar. Passamos uns 20 minutos de silêncio total, sem saber o que dizer, porque isso simboliza um apagamento enorme da maternidade de mulheres lésbicas. A gente achou que tinha vencido algumas batalhas, mas parece uma vitória fake. O que é um documento impresso corretamente se o mundo que se torna cada vez mais digital e no sistema está errado?" questiona.

Em todos os documentos impressos emitidos para Bernardo e Iolanda até agora, os nomes de Marcela Tiboni e Melanie Graille, aparecem no campo "filiação", sem distinção de gêneros. Mas no site da Receita Federal a informação está diferente: apenas o nome de Melanie está registrado - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Nos documentos impressos de Bernardo e Iolanda os nomes de Marcela Tiboni e Melanie Graille aparecem no campo "filiação". No site da Receita Federal, no entanto, só o nome de Melanie está registrado
Imagem: Arquivo pessoal

Marcela decidiu fazer a consulta ao CPF dos gêmeos depois de ler o relato de outra mãe, que estava com dificuldade de receber o auxílio emergencial do governo federal justamente porque não constava como mãe de seu filho na Receita. E, até agora, ouviu pelo menos uma centena de histórias semelhantes.

"Não se trata só da minha família, mas de todas as famílias que lutaram tanto para ter seus direitos reconhecidos. A Receita teve oito anos desde que o casamento homoafetivo foi reconhecido no Brasil para ajustar seu sistema. É de uma gravidade que eu nem sei dizer".

Ela continua: "Tem casais de dois pais com dificuldade de acessar os dados dos filhos porque o sistema não aceita nome masculino. Ouvimos casos de crianças que não conseguem tirar passaporte. São inúmeras situações, inúmeros problemas que podem surgir ao longo da vida inteira".

Nas publicações feitas por Marcela no Instagram, há dezenas de comentários de outras mães lésbicas afirmando que não conseguem acessar a poupança dos filhos menores de idade no banco e nem se apresentar como responsável legal em postos de saúde, pois na carteirinha do SUS (Sistema Único de Saúde) consta apenas o nome de uma das mães. Leia:

"Fiquei pensando a noite toda e resolvi entrar no site para ver como está cadastrado o CPF dos bebês. Em um dos campos para consulta pede o nome da mãe e aí foi meu choque. O nome da Camila não consta em nenhum dos dois bebês, só aparece a informação deles quando coloco o meu nome no campo mãe. A informação dele que tem duas mães no documento só foi feita na impressão mas, no sistema a Camila é o pai"

Vanessa Marinetto

"Passamos por isso já na maternidade quando não sabiam como preencher a CNV [Certidão de Nascido Vivo] pois já vem escrito 'nome do pai' e não pode rasurar" Verônica Lanceiro

"Essa questão me incomoda desde sempre. Pro sistema não somos mães, não há espaço para duas mães. De que vale a maquiagem na certidão de nascimento, se em qualquer formulário do governo nós mães gestantes não estamos lá? É revoltante, triste, angustiante" Mariana Oliveira

"Quando fui registrar meu filho no cartório, a moça que me atendeu disse que no sistema da Receita Federal só aceitava colocar o nome de uma das mães. Aí ela me perguntou qual o nome eu queria que colocasse. Optei pelo da minha esposa. Então o meu também não consta. Muito triste" Lídia Lamounier

"Eu sou a mãe que gestou e não apareço como mãe! De nenhum dos meninos! Achei isso muito grave. No cartão SUS [Sistema Único de Saúde], só aparece o meu" Beatriz Federmann

"A poupança do meu filho, no Banco do Brasil , não me permite acesso também, pois foi cadastrado no campo mãe o nome da Taís, e o campo pai está vago. Ou seja, não apareço como responsável legal" Fabiane Barboza

Abaixo-assinado e ação coletiva

Marcela e Melanie levaram o caso à Abrafh (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas) e à startup Bicha da Justiça, que pelas próximas duas semanas pretendem reunir pelo menos 50 mil assinaturas em apoio à causa.

Na sequência, a Abrafh deve protocolar uma ação coletiva pedindo que a Receita Federal e outros órgãos públicos deixem de usar o nome da mãe, com distinção de gênero, como dado cadastral.

Bruna Andrade, advogada especialista em direito homoafetivo e fundadora da Bicha da Justiça, disse à Universa que a ação coletiva pode levar algum tempo para ser concluída — ainda assim, está otimista.

"Hoje há uma normativa da CNJ (Comissão Nacional de Justiça) que determina que não haja nos documentos identificação de pai e mãe, com distinção de gênero, mas apenas o campo "filiação", justamente para abraçar famílias que não são compostas por um pai e uma mãe. E já que temos essa determinação, não faz sentido que o banco de dados da Receita ou de qualquer outro órgão público não respeite. Por isso estamos bastante otimistas".

A advogada afirma que essa "não é apenas uma questão ideológica do movimento LGBTQ+", mas tem implicações práticas na vida das famílias.

"A DNV (declaração de nascido vivo, documento que atesta o nascimento das crianças, emitido nas primeiras horas de vida) ainda vem com os campos "pai" e "mãe", por exemplo. A inviabilização da dupla maternidade ou dupla paternidade já começa aí. Mas quando a gente fala do banco de dados da Receita, isso tem um peso ainda maior, porque além do não reconhecimento de famílias homoafetivas, há implicação prática porque o CPF é usado em inúmeros momentos, como na emissão de passaportes, na inscrição de um programa do governo, na declaração do Imposto de Renda", diz a advogada.

Enquanto não corre a ação coletiva corre, a recomendação é que as famílias entrem na Justiça contra a Receita Federal individualmente. Bruna Andrade lembra que quem não tem condições de contratar um advogado pode recorrer à Defensoria Pública ou ao Ministério Público de seus estados.

Outro lado

Procurada por Universa, a Receita Federal não esclareceu por que ainda não registra duas mães ou dois pais em seu sistema, não informou se treina seus funcionários para atender casos do tipo e não informou quais são os possíveis caminhos para as famílias que enfrentam problemas relatados na reportagem.

Após a publicação da reportagem, o órgão enviou uma nota dizendo que entrou em contato com o Ministério da Cidadania em relação às famílias homoafetivas com dificuldade no acesso ao auxílio emergencial. Leia na íntegra:

"A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil disponibilizou acesso a todos os dados do Cadastro de Pessoa Físicas para a concessão do auxílio emergencial pelo Ministério da Cidadania, incluindo dados de filiação independente do sexo. A Receita Federal entrou em contato com esse Ministério no intuito de colaborar para a solução mais rápida dos casos apontados pela jornalista".