Topo

"Denunciei abuso como Mari Ferrer, mas um tribunal com mulheres me acolheu"

Getty Images/iStock
Imagem: Getty Images/iStock

*Esther, 38 anos, em depoimento a Luiza Souto

De Universa

11/11/2020 04h00Atualizada em 29/12/2020 11h47

"As pessoas que julgam a [influenciadora] Mari Ferrer e falam que ela inventou que foi estuprada não sabem o quão difícil é levar adiante uma denúncia desse tipo. É uma experiência tão ruim que ninguém quer passar por isso. Quando vi as cenas da audiência dela, fiquei chocada e lembrei tudo o que passei. Por tudo o que eu vivi, penso que a gente tem que estar ao lado da vítima até que se prove o contrário.

Comecei a ser abusada pelo meu padrasto quando tinha dez anos. Eu não tinha consciência do que era carinho de pai e do que era abuso. Ele tocava meu corpo, mexia muito nas minhas partes. Isso durou quatro anos. Conforme eu crescia, fui entendendo que não era certo e comecei a ficar incomodada.

Lembro que ia para a escola e não conseguia mais prestar atenção em nada. Não tive infância. Mas também não tinha coragem de contar para minha mãe. Ela era depressiva e tinha dado muito errado no amor. Meus pais se separaram quando eu tinha dois anos. E pensei que, se eu contasse, ela iria morrer. Aí, o cenário seria pior, porque eu teria que ficar com o meu padrasto. Então, aguentei a situação, mas passei a ter muita raiva dele.

Tia percebeu e alertou a mãe

Uma tia, irmã da minha mãe, começou a perguntar por que eu não gostava do meu padrasto. Eu já tinha 14 anos e respondia que ele era chato e traía a minha mãe. Ele era professor e surgiram boatos de ele que teria ficado com uma aluna de 16 anos. Passavam trotes falando sobre isso lá para casa. E minha mãe ficou muito mal, extremamente abalada.

Um dia, os dois viajaram, e essa tia insistiu em que eu contasse tudo que quisesse para ela, disse que eu poderia confiar. Senti segurança e falei que ele mexia comigo. Essa tia me fez um monte de perguntas e, no final, me prometeu que não falaria nada para minha mãe. Mas, no dia seguinte, ela contou tudo. Só escutei minha mãe gritando e chorando. E o meu padrasto confessou. Disse ainda, na frente de todo mundo, que eu gostava do que ele fazia. E foi embora em seguida.

Demorou uma semana para irmos à delegacia. Primeiro, minha mãe queria achar uma advogada mulher porque tinha medo de que eu fosse humilhada.

Essa advogada que ela achou era despachada, gente boa, forte. Ela me ouviu e me explicou o que ia acontecer na delegacia. Foi essa advogada quem segurou a onda e tentou deixar tudo tranquilo pra mim

Na delegacia, também fui atendida por uma mulher. A delegada que me acolheu já estava nos esperando e também me ouviu. Mas, quando me mandou para o exame de corpo de delito, no IML (Instituto Médico Legal), foi horrível. Lembro do cheiro do formol e que o médico estava muito perdido. Chegou a perguntar para a advogada o que tinha que fazer comigo. Foi ela quem explicou que ele precisava checar se eu era virgem, e eu nem sabia o que era penetração. Mas isso não houve.

Até então, eu nem conseguia falar com a minha mãe sobre tudo o que aconteceu. Eu pensava: 'Que droga que eu causei isso para ela'. Achava que ela não merecia passar por aquilo, mas ser feliz. Ela morreu num acidente de carro quando eu tinha 20 anos e eu lamento não termos conseguido conversar bem sobre o assunto.

Audiência com mulheres

mari ferrer - Reprodução / The Intercept Brasil - Reprodução / The Intercept Brasil
Mariana Ferrer chora em audiência e advogado a chama de dissimulada
Imagem: Reprodução / The Intercept Brasil

O abusador seguiu a vida dele até a audiência, que aconteceu meses depois da denúncia na delegacia. No dia do julgamento, fui ao escritório da advogada com minha mãe e, juntas, seguimos para o fórum. Quando entrei na sala, lá estavam a juíza, a promotora e a minha advogada. Os homens eram ele e seu advogado.

Lembro que a promotora perguntou: 'Você prefere conversar só comigo e com a juíza?'. Uma fofa. E, diante da minha resposta afirmativa, pediu para eles saírem.

Hoje, penso no caso da Mariana e imagino que horror é ter que ver o advogado do cara naquela situação. Eu tive muita sorte

Enquanto contava toda a minha história, olhei para a promotora e vi que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Pensei: 'Que bom que ela está acreditando em mim'. Fiquei com medo de que achassem que eu estava inventando.

Ele foi condenado a 12 anos de prisão por atentado violento ao pudor, mas só foi para a cadeia quando eu já tinha 20 anos. Durante esse período, eu tinha medo de encontrar com ele pela cidade, e a juíza deu uma ordem de restrição para que ele não pudesse se aproximar de mim.

É muito simbólico quando um homem como ele é condenado porque valida a sua história. Se a pessoa não é condenada, parece que tudo o que você falou pode ser mentira. Lembro que fiquei emocionada ao ver a sentença. O que senti não era felicidade, porque ninguém quer colocar alguém na cadeia, mas pensei: 'Deu tudo certo, apesar de tudo'.

Ter sido atendida só por mulheres foi determinante, porque, como mulher, a gente já sofre preconceito. E é mais fácil outra mulher ter empatia pela situação

"Não conta pra ninguém"

Como o processo correu em segredo de justiça, a advogada combinou comigo e com minha mãe de nunca contarmos para ninguém, nem para namorados, para eu seguir a vida normalmente. Para ela, as pessoas iriam me olhar com pena ou então perguntar se eu não me insinuei para ele.

Vivi escondendo isso. E, depois que minha mãe morreu, tudo meio que ficou sem sentido. Passei por anos difíceis, com muita terapia. E só contei para o meu ex-marido depois que estávamos há dois anos juntos.

Mas, quando surgiu o movimento 'Me Too' [em que mulheres relatavam ter sofrido diferentes tipos de abusos], postei nas minhas redes dizendo 'eu também'. Várias pessoas vieram me apoiar e pedir conselhos. Mas, ainda assim, perguntaram por que eu demorei tanto a falar.

Por isso, digo que ninguém sabe o que aconteceu com a Mari Ferrer, mas você não pode questionar a vítima. Não consigo acreditar que alguém queira questionar uma pessoa que coloca sua cara a tapa e conta sua história, como ela fez.

Não dá para acreditar em justiça igualitária porque a mulher é sempre muito subjugada. Então, temos que ter mais empatia e entender que a mulher sofre mais

Tudo isso afetou a minha vida para sempre, afetou a minha relação com o meu corpo. Não consigo me entregar totalmente. E não confio nos homens. Sempre acho que eles são uns canalhas. E prefiro não ter filhos, porque, se tiver uma mulher, tenho medo de ela passar pelo que passei.

Por isso, é preciso ter empatia e partir do princípio de que a pessoa que foi à delegacia fazer a denúncia é uma vítima. Não sei se faria tudo o que fiz de novo, por mais que tenha sido super bem recebida. Não é fácil contar a sua intimidade para pessoas estranhas. Ninguém quer fazer isso. E a sociedade, especialmente a brasileira, é muito preconceituosa.

A mulher tem o tempo dela para conseguir falar. E não tem nada de errado nisso. Mas, se ela está querendo denunciar, digo para não ter medo. Há muitos casos em que não há tanta prova, como no da Mari, mas você tem que ter certeza de que é a vítima."

*O nome foi alterado para preservar a identidade da vítima