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Meninas relatam castigos e homofobia em centro de detenção, diz relatório

Registro de vistoria no Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, em Fortaleza - Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará
Registro de vistoria no Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, em Fortaleza Imagem: Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

10/11/2020 04h00

Meninas adolescentes denunciaram a entidades de direitos humanos que estão sendo castigadas, punidas de forma cruel, isoladas e sendo vítimas de preconceito por homofobia no Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, em Fortaleza, que abriga 33 adolescentes que cometeram algum tipo de infração —72% delas são negras.

Um relatório com as denúncias foi produzido após uma visita ao local, administrado pelo governo do estado do Ceará, feita por representantes do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente e do Fórum Cearense de Mulheres no último dia 25 de setembro. O objetivo do centro seria atender as meninas em suas necessidades básicas durante o período de internação, enquanto cumprem a medida socioeducativa, até a reinserção delas ao convívio familiar.

Segundo o relato das adolescentes, seria cotidiana a prática dos socioeducadores de algemá-las nas grades dos dormitórios e do refeitório durante a noite e a madrugada. A prática, dizem, seria utilizada como uma sanção para aquelas que teriam batido na grade ou que teriam gritado para solicitar algum tipo de atendimento.

"Em todos os relatos apresentados, os socioeducadores identificados como responsáveis por tal ação eram do sexo masculino. Pelos relatos, as adolescentes ficariam algemadas durante três a quatro horas por dia, e algumas afirmaram que os socioeducadores puxavam os seus cabelos nessas ocasiões", diz o documento.

"Essa prática é ilegal, fere a dignidade das adolescentes, conforme dispõe o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ademais, a Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece que: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito", informa o relatório.

Outro relato feito pelas adolescentes foi um episódio em que socioeducadores —novamente homens— teriam entrado no dormitório e colocado as adolescentes no chão do banheiro e as teriam agredido, pisando em seus corpos. "Uma adolescente chegou a mencionar que um socioeducador havia afirmado que iria 'apagar' ela. Outra jovem contou que um socioeducador falou que 'ia trabalhar pra ela morrer e ser enterrada ali na unidade'", diz o documento, que foi encaminhado para o Ministério Público, que poderá ingressar com futuras ações.

"Tranca" e "cabrões"

No centro, as jovens relatam que passaram pelo dormitório "tranca", uma espécie de solitária dentro da unidade. "Mais da metade dos grupos focais, 64%, apresentaram relatos de que as adolescentes receberam a sanção de isolamento forçado no dormitório tranca", aponta.

As questões de homoafetividade também são punidas dentro da unidade, segundo relatos das jovens. Segundo elas, o tratamento dos socioeducadores com as adolescentes LGBT é diferenciado, com características de violência e agressividade. Existem alojamentos destinados às adolescentes LGBT, também denominadas pelos profissionais da instituição de "cabrões."

"As meninas LGBT informaram que sofrem restrições de acesso a atividades e ao momento de lazer, e que recebiam 'punição' por demonstração de afeto. Apontou-se, nesse sentido, uma discriminação de gênero que é revelada a partir do disciplinamento dos corpos e da divisão do convívio das adolescentes, com o reforço ao estereótipo da mulher LGBT", diz o documento.

Nas nove recomendações do relatório, as entidades pedem, entre outras coisas, que seja abolido o uso de algemas, que haja o fechamento dos locais destinados ao isolamento com a finalidade do castigo e que os temas de igualdade étnico-racial, de gênero e de orientação sexual sejam tratados como "parte integral do atendimento socioeducativo"

Meninas têm histórico de negação de direitos

Segundo a presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará, Cristiane Faustino, a condição encontrada no centro é preocupante, mas não surpreende.

"A situação desses locais de socioeducação, como as de presídios, são bastante públicas, notórias. Na verdade, só vai surpreender quando acharmos algo diferente disso", diz.

Dos pontos encontrados, ela destaca os castigos s com algo muito grave. "Temos pessoas sendo algemadas e sofrendo sanções. Como é que agentes públicos fazem o trabalho desse jeito com adolescentes? Isso levanta a questão: como eles estão sendo selecionados e treinados para esse serviço? Claro que não é um trabalho fácil, mas a prática de tortura não se justifica", diz.

Outra questão que chamou a atenção é o fato de que a maioria dos agentes eram homens. "Isso não é uma coisa recomendada. A gente sabe que a violência sexual é uma realidade grave, e isso se torna uma situação de muito risco quando se trata de meninas jovens", afirma.

Para ela, uma das marcas das adolescentes internadas no local é a da exclusão social. "Se você puxar a linha do passado dessas meninas, vai encontrar uma história de negação de direitos e de reconhecimento. É preciso sempre levar em conta o contexto. E o que nós, como sociedade, temos feito com essas pessoas? O que fazemos para reduzir essa sociedade tão desigual e desumana? A gente precisa romper a barreira do não reconhecimento, rever nossos métodos socioeducativos. Eles não estão dando o resultado, há muita violência", avalia Cristiane.

Outro lado

Procurada por Universa, a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo do Ceará, responsável pelo Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, afirmou que o centro inspecionado não conta com os espaços de isolamento descritos no relatório.

"A unidade é referência no atendimento socioeducativo, sem possuir histórico de situações de crise ou violação de direitos ao longo de sua trajetória", diz a nota da superintendência.

Ainda segundo a superintendência, a unidade é destaque por "metodologias e práticas socioeducativas que são exemplos de trabalho positivo" com adolescentes, que foram "premiadas no concurso de redação da Defensoria Pública da União."

Sobre o uso das algemas, a unidade diz que há previsão legal e regulamentada por portaria de segurança para sua utilização. "O instrumento é utilizado apenas em casos excepcionais, devidamente registrados em livro de ocorrências, tendo respaldo na Lei do Sistema Nacional de Socioeducação e no Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA), bem como seguindo as orientações da Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal".

Com relação às questões de discriminação, a superintendência afirma que não há relatos de violações ou discriminações com relação à orientação sexual e que "mantém articulação com órgãos estaduais e municipais e com as universidades para a construção de uma Portaria para reforçar o atendimento humanizado e adequado para estas adolescentes."

O órgão afirma ainda que todas as denúncias de violação de direitos humanos são investigadas. Desde a criação da corregedoria da superintendência, em 2016, foram instaurados 212 procedimentos administrativos ou sindicâncias em todas as unidades, "que variam entre denúncias de agressões/maus tratos sofridos pelos adolescentes, faltas e/ou ausências injustificadas, negligência ou omissão de condutas e inadequação às rotinas estabelecidas nas unidades socioeducativas, havendo sempre responsabilização no caso de comprovação de práticas inadequadas".