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Estupro culposo? Afinal, por que acusado do caso Mari Ferrer foi absolvido?

Camila Brandalise

De Universa

09/11/2020 04h00Atualizada em 29/12/2020 11h34

A comoção em torno do caso envolvendo a influenciadora Mariana Ferrer na última semana se deu, principalmente, pela discussão em torno do termo "estupro culposo", apresentado pela reportagem do The Intercept para se referir à tese usada pelo Ministério Público de Santa Catarina para pedir a absolvição do réu, André de Camargo Aranha, e que teria sido acatada, na sequência, pelo juiz do caso em sua sentença.

Mariana afirma ter sido dopada enquanto trabalhava em um evento no Cafe de la Musique, em Florianópolis, e estuprada em dezembro de 2018. Em setembro, foi divulgada a sentença do caso com a absolvição do acusado.

O termo "estupro culposo" não está presente nas 51 páginas da sentença nem nas 91 páginas das conclusões do promotor de Justiça, Thiago Carriço de Oliveira, que se posicionou para absolver o réu. A reportagem teve acesso aos dois documentos e conversou com quatro juristas que os analisaram.

O site The Intercept afirmou, depois da publicação da reportagem, que a expressão foi usada para "resumir o caso e explicá-lo para o público leigo". Ainda que o termo não conste nos documentos, a ideia da ausência de dolo, ou seja, de não haver intenção de praticar o crime, está presente nas alegações do MP. Em sua argumentação, o promotor afirma que "não há qualquer indicação nos autos acerca do dolo [...], não se afigurando razoável presumir que [Aranha] soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação", afirma Oliveira. Na sequência, como já mostrado pelo The Intercept, ele explica que o estupro de vulnerável não admite a modalidade culposa, pois precisa haver a intenção para que esse crime exista. Foi a partir dessa argumentação que surgiu o termo "estupro culposo".

Mas, afinal, por que Aranha foi absolvido?

Desde o começo do processo, a acusação contra o réu era de estupro de vulnerável. Ou seja, de que ele praticou "conjunção carnal ou ato libidinoso" —que significa qualquer tipo de relação sexual, de penetração a sexo oral— com Mariana sem que ela pudesse oferecer resistência porque, segundo o relato da jovem, foi dopada.

As conclusões finais tanto do Ministério Público quanto do juiz foram de que, embora se comprove que Aranha praticou atos sexuais pelos laudos, como o exame que mostra o rompimento do hímen de Mariana e o que comprova que havia sêmen dele na roupa dela, não haveria provas suficientes para comprovar a vulnerabilidade da vítima.

"Sempre que há uma denúncia de estupro, as provas precisam provar dois pontos: que houve relação sexual e que não houve consentimento. A falta de consentimento pode se dar por violência ou grave ameaça, o que se enquadraria no estupro do tipo simples, ou porque a vítima estava vulnerável", explica Maíra Zapater, especialista em Direito Penal e Processual e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "A prova de que houve relação, no caso de Mariana Ferrer, existe, e o MP e o juiz admitem isso, então toda a discussão do processo girou em torno da vulnerabilidade ou não dela."

Por fim, ao analisar provas e relatos de testemunhas, o juiz Rudson Marcos afirmou que "não há provas contundentes nos autos [...], a não ser a palavra da vítima" que comprove sua vulnerabilidade. Por isso, não havia como condenar Aranha, segundo o juiz. O que não significa que o crime não ocorreu mas que, para a Justiça, não há provas suficientes para uma condenação.

No processo, além dos laudos periciais que comprovam rompimento de hímen e existência de sêmen do acusado, há o relato do motorista do Uber que levou Mariana para casa, a única pessoa que a viu após o ocorrido, em que ele afirma que ela estava sob efeito de alguma substância entorpecente. A mãe de Mariana também afirma que a filha chegou alterada por ter sido dopada. Testemunhas ouvidas no processo afirmam não ter visto a vítima em estado de embriaguez. O exame toxicológico deu negativo.

A professora Maíra Zapater questiona o fato de a palavra da vítima não ter tido mais crédito nesse caso. "É estranho porque o relato dela não foi levado em consideração quando ela diz que estava incapaz de consentir."

Como explica a advogada Gabriela Souza, do escritório Advocacia para Mulheres e uma das fundadoras do movimento Me Too Brasil, que ajuda vítimas de assédio e violência sexual em todo o Brasil, a jurisprudência brasileira considera os relatos das vítimas de crimes sexuais como prova preponderante, e o próprio juiz admite isso em sua sentença. "Mas, ainda assim, ele conclui que precisava ser corroborado por outros elementos", diz.

Aranha mudou sua versão sobre o que ocorreu ao longo do processo. No primeiro depoimento, na delegacia, disse que não chegou a ter contato com Mariana. Depois, ficou comprovado que havia sêmen dele na roupa dela. Na última audiência, afirmou não se lembrar do que aconteceu, mas admitiu que houve sexo oral. O advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, foi procurado pela reportagem de Universa para falar sobre o caso, mas não respondeu ao pedido de entrevista até a publicação deste texto.


O juiz acatou a tese de "estupro culposo"?

Não. O juiz concordou com a absolvição do Ministério Público pois afirma não haver provas para justificar a vulnerabilidade de Mariana. O promotor do Ministério Público também não usa o termo.

As alegações finais do MP afirmam que não seria "razoável presumir que [o réu] soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação" e que "não há, nos autos [do processo] qualquer comprovação de que o acusado tinha conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima para resistir a sua investida".

É usado o conceito jurídico de "erro de tipo". A advogada criminalista e professora de Direito Penal Adriana D'Urso explica o termo: "Se um homem tem relação sexual com uma menina menor de 14 anos, o que pela lei é estupro de vulnerável, mas ela apresenta para ele um documento falso, em que diz ter mais de 18, isso é um erro de tipo. Não houve intenção de praticar o crime", diz. "Isso acontece com outros crimes. E a pessoa será punida se, no Código Penal, a prática tiver a modalidade culposa, sem intenção, como no caso do homicídio. O estupro não aceita isso."

"O ponto chave da sentença recaiu sobre a prova da vulnerabilidade dela, se ela seria incapaz de oferecer resistência ou não. E, mesmo se estivesse incapaz, ele não percebeu, então, para ele teria sido um ato consentido, de acordo com a sentença", pontua Adriana.


A sentença foi correta ao absolvê-lo?

A advogada Adriana D'Urso afirma que não é possível dizer se a sentença está correta ou não sem ler todo o processo, que tem mais de 3.000 páginas e está sob sigilo. "Não é possível que pessoas que são estranhas ao processo façam esse tipo de análise. Quem tem que fazer essa análise são os advogados da causa, a defesa, o assistente de acusação e o Ministério Público", afirma.

"Sabemos que há sentenças que são aberrações, com posições pessoais, racistas, misóginas. Neste caso, nas 51 laudas da sentença, o que se verifica é que o juiz analisou as provas dos autos e concluiu que não tinha prova suficiente de vulnerabilidade a ensejar uma situação de estupro de vulnerável", opina.

A advogada Gabriela Souza discorda. "Tenho certeza de que a sentença está errada e que o processo foi contaminado. O juiz deve agir com imparcialidade, de forma livre. Mas, já no início da sentença, diz que não há possibilidade de se condenar o réu uma vez que o representante do Ministério Público pede absolvição. Ele deveria ter sido isento", afirma.

Ainda de acordo com Adriana, essa é uma discussão comum no sistema jurídico, a de que o juiz precisa seguir o MP se este pede a absolvição do réu. "Nesse raciocínio, se o titular da ação penal, ou seja, quem fez a denúncia, no caso o MP, muda de ideia e pede absolvição, por que o juiz, da cabeça dele, diria que tem que condenar?", questiona.

Em entrevista a Universa publicada na quinta-feira (5), o advogado da vítima, Julio Cesar Ferreira da Fonseca, afirmou que há provas contundentes de que houve crime e que o processo apresenta falhas e problemas. Também afirmou ter pedido a anulação da sentença em um recurso apresentado há cerca de um mês ao TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina).

O caso reverberou também no Congresso. A senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), procuradora da Mulher no Senado, afirmou que também pedirá anulação da sentença. Diversos magistrados brasileiros se posicionaram em relação ao caso, principalmente para criticar as ofensas e humilhações proferidas pelo advogado de Aranha contra Mariana, entre eles o ministro Gilmar Mendes. A OAB-SC (Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina) abriu um procedimento interno para analisar a conduta de Gastão.

O caso teve uma troca de promotor e mudança de tese do Ministério Público. Isso é comum?

Sim. A advogada criminalista e especialista em direitos das mulheres Andressa Cardoso afirma que o promotor pode trocar de vara por qualquer motivo. "A representação no processo deve ser feita pelo Ministério Público como entidade, não por uma ou outra pessoa especificamente. Por isso, pode haver essa alternância", explica.

Também afirma que pode acontecer de o MP mudar a tese, como aconteceu no caso de Mariana, em que o primeiro promotor, Alexandre Piazza, pediu a condenação de Aranha por estupro de vulnerável, e o segundo promotor pediu sua absolvição. "Nem todos os membros mantêm o mesmo entendimento dos processos. Normalmente, a atuação [do MP] é zelar pelo direito da vítima, mas a função principal é a fiscalização da correta aplicação das leis", diz.

Maíra Zapater pontua, porém, que a mudança drástica na tese chama a atenção. "Não há impedimento legal para que isso aconteça. Quando o promotor oferece a denúncia, tem só o inquérito, e pode ser que, no decorrer do processo, ele se convença de que a acusação não é tão fundamentada. Acontece, mas não considero comum. Então, fica a suspeita nesse caso porque houve uma mudança de 180º na argumentação."

Consultado pela reportagem, o Ministério Público de Santa Catarina afirmou que não houve troca de promotor, mas sim uma "mudança na carreira" do primeiro promotor do caso, Alexandre Piazza, que pediu transferência para outra área de atuação dentro do órgão.


O argumento do MP e a sentença do caso podem abrir uma jurisprudência perigosa para mulheres?

Para Gabriela Souza, advogada do Me Too Brasil, a resposta é sim. "Embora não exista o 'estupro culposo' em nenhuma parte do processo, a argumentação do MP que foi aceita pelo juiz, de que o réu não tinha como perceber a vulnerabilidade da vítima, pode dar margem para argumentações na mesma linha. Então, outros homens, em sua defesa, vão dizer que não sabiam que a mulher estava bêbada ou incapaz de consentir, ainda que isso esteja nítido, mas que não possa ser provado", diz. "Acredito que se a pessoa vai até uma delegacia para dizer que não consentiu, é o caso de a Justiça observar isso de uma maneira diferente do que a que está sendo feita."

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