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Membro do CNJ cita 'tortura psicológica' e quer apurar caso Mariana Ferrer

Felipe Amorim

De Universa, em Brasília

03/11/2020 17h11Atualizada em 29/12/2020 12h15

A corregedora do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministra Maria Thereza de Assis Moura, autorizou a abertura do procedimento preliminar para investigar a conduta do juiz de Santa Catarina que presidiu a audiência do caso Mariana Ferrer.

O pedido foi feito pelo integrante do CNJ Henrique Ávila. O conselheiro afirma ver elementos de "tortura psicológica" no tratamento dado a Mariana durante a audiência e diz que, ao não ter interferido, o juiz Rudson Marcos indica ter dado aval às agressões verbais. A audiência foi registrada em vídeo e teve a gravação revelada por reportagem publicada hoje pelo site "The Intercept Brasil".

"As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual", afirma Ávila no pedido ao CNJ.

"Causa-nos espécie que a humilhação a que a vítima é submetida pelo advogado do réu ocorre sem que o juiz que preside o ato tome qualquer providência para cessar as investidas contra a depoente. O magistrado, ao não intervir, aquiesce com a violência cometida contra quem já teria sofrido repugnante abuso sexual. A vítima, ao clamar pela intervenção do magistrado, afirma, com razão, que o tratamento a ela oferecido não é digno nem aos acusados de crimes hediondos", diz o conselheiro do CNJ no ofício à Corregedoria.

O juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, foi o responsável por comandar a audiência do processo em que o empresário André de Camargo Aranha foi acusado pelo Ministério Público de ter estuprado a influenciadora e promotora de eventos Mariana Ferrer em um bar de Florianópolis (SC) em 2018. Mariana tinha 21 anos na época.

A reportagem de Universa tentou entrar em contato com o juiz Rudson Marcos, por meio da assessoria de imprensa do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina), mas ainda não obteve resposta.

Aranha foi absolvido das acusações, em sentença publicada em setembro.

Durante a audiência do caso, segundo o Intercept, o advogado do empresário, o defensor Cláudio Gastão da Rosa Filho, se refere como "ginecológicas" a fotografias profissionais feitas por Mariana em sua carreira de influenciadora digital e diz que não gostaria de ter "uma filha do teu nível".

O advogado segue exibindo fotografias da jovem e afirma: "Peço a deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você". O defensor prossegue: "não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo".

A jovem reage à investida do advogado e, chorando, se dirige ao juiz: "Eu gostaria de respeito, eu tô implorando por respeito, nem os assassinos são tratados da forma como eu estou sendo tratada", de acordo com o vídeo da audiência publicado pelo Intercept.

Apuração preliminar

O pedido do conselheiro Henrique Ávila foi analisado pela corregedora do CNJ, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, que também integra o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

A reclamação disciplinar que foi instaurada é um tipo de apuração preliminar do caso. Se a corregedora do CNJ entender que há indícios de atuação irregular do juiz no episódio, será proposta a abertura de um processo disciplinar para apurar o caso e eventualmente aplicar punições.

A abertura de processo disciplinar precisa ser autorizada pelo plenário do CNJ, em deliberação por todos os conselheiros.

MPSC defende promotor e critica advogado

Em nota oficial, o MPSC (Ministério Público de Santa Catarina) disse não ser verdade que o promotor Thiago Carriço pediu a absolvição do réu "por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro".

"A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado", diz o MPSC em nota.

"Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime", acrescenta.

"Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de 'estupro culposo', até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável", completa.

Apesar de defender a posição do promotor, o MPSC criticou a postura do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho na defesa do réu — que, segundo o comunicado, "não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes".