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O retorno da velejadora que ficou 6 meses presa em Ushuaia pela pandemia

Christina Amaral, velejadora que ficou presa em Ushuaia por causa da pandemia - Acervo pessoal
Christina Amaral, velejadora que ficou presa em Ushuaia por causa da pandemia Imagem: Acervo pessoal

Cláudia de Castro Lima

Colaboração para Universa

11/10/2020 04h00

O isolamento forçado chegou ao fim. Depois de seis meses presa em Ushuaia por causa da pandemia, a velejadora Christina Amaral, 56, conseguiu voltar ao Brasil. Chegou no último dia 21 e, não fosse pelo custo financeiro (ficou sem trabalhar e teve de pagar o píer em que ficou ancorada em dólar), diz que não teria reclamado da temporada. Ela estava, afinal, em um dos lugares mais bonitos do mundo.

Christina velejava pela Patagônia argentina, na região conhecida como "o fim do mundo", quando a pandemia foi decretada e as fronteiras, fechadas. Ficou presa lá, sem poder voltar, com temperaturas que chegam a -10ºC no inverno. Ainda assim, estava confortavelmente instalada em um veleiro de 40 pés (cerca de 12 metros de comprimento), com três cabines, banheiro com água quente, isolamento térmico, aquecimento, cozinha e sala de jantar. Na bagagem, trouxe a saudade das "montanhas nevadas" que avistava de seu barco.

Os planos agora incluem retomar as aulas presenciais para sua turma de velejadoras mulheres. Elas não são navegadoras exatamente iniciantes: todas têm certa experiência e habilitação para velejar. Em suas clínicas, Chris as bota no mar para treinar as velejadas oceânicas e de costeiras - e agora vai levá-las justamente para a Patagônia. "A ideia é que adquiram segurança, autonomia, independência", diz.

Com mais de 20 anos velejando, Chris percebeu que as mulheres não ocupam esse espaço como deveriam no Brasil porque têm medo. "O conhecimento liberta", diz ela. "Isso é diferente na Europa. Na França, por exemplo, todo mundo aprende a navegar quando aprende a nadar."

Qual o maior perrengue que você passou velejando?

Paisagem flagrada por Christina Amaral durante a viagem - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Paisagem da viagem de Christina Amaral, que ficou presa em Ushuaia
Imagem: Acervo pessoal

Você sabe que 90% das vezes que alguém me pergunta alguma coisa sobre perrengue são mulheres que ainda têm medo de ir para o mar? Até tenho cuidado ao falar disso e sempre digo para elas que aquelas coisas que você vê na TV, tipo o filme Mar em Fúria, não existem, tá? Você não vai viver isso. Existem tempestades a bordo, mas você prepara o barco e ela vai acabar em dois, três dias no máximo. Os desconfortos duram pouco. Então, por pior que seja o que você está enfrentando, aquilo não vai durar para sempre. Mas, para mim, houve duas experiências mais intensas. Uma vez o leme do meu barco quebrou e afundou e eu fiquei à deriva, 70 milhas longe da costa - mas consegui um reboque em um porto perto para poder depois construir outro leme. Outra vez peguei uma tempestade que durou uns três dias e fiquei navegando sem vela. Amarrei tudo, deixei no piloto de vento, de frente para as ondas, e fiquei lá dentro da cabine três dias. Olhava de vez em quando o lado de fora para ver se estava tudo bem e, com o barco chacoalhando, tentava comer, dormir, manter a rotina. E pensando: bom, uma hora acaba.

Você acaba de voltar para o Brasil depois de seis meses presa no Ushuaia. Como foi retornar?

Cheguei em São Sebastião [litoral norte de São Paulo] na segunda-feira [21 de setembro]. Voltar deu muito trabalho. Levei duas semanas para conseguir comprar a passagem porque só tinha voo duas vezes por mês para Ushuaia. Fora isso, eu precisava de uma autorização para embarque, que demorou mais duas semanas para sair. No avião, sobre as montanhas nevadas da Tierra del Fuego, já me deu um aperto de saudades daquela vista. Hoje estou na casa de uma amiga e, quando olho as montanhas de Ilhabela e a Serra do Mar, fico imaginando a neve. Eu amo a Patagônia. Só voltei porque tinha que trabalhar.

Como você ficou presa no "fim do mundo"?

Para quem navega, o Cabo Horn [no arquipélago Terra do Fogo, no Chile] é uma coisa mítica, tipo o Everest. E não é impossível ir para lá: já fiz essa navegação num veleiro de 29 pés sem aquecimento no outono. Então a ideia era: por que não ir no extremo do mundo, nas altas latitudes, com minhas alunas mulheres, que não são iniciantes? Tudo de forma muito organizada, tecnicamente preparada. Eu e um amigo, que é navegador e tem um barco de 40 pés, nos juntamos e fomos no ano passado para lá com três turmas. Deu muito certo, mas o custo era alto demais. Planejamos, então, voltar em 2020 para passar um ano lá, levando todas as minhas alunas em todas as estações do ano. E então nós viemos para a Argentina buscar umas peças do motor de popa e adivinha o que aconteceu? Pandemia no dia seguinte, 15 de março. Ficamos presos. Já estava com a papelada de saída pronta, mas fecharam as fronteiras, então a Argentina não podia liberar a nossa saída, porque o Chile não liberava a nossa entrada.

O que a região tem de especial?

A velejadora já sente saudade do gelo da Patagônia - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Retrato da Patagônia por Christina Amaral, velejadora em Ushuaia
Imagem: Acervo pessoal

Milhares de ilhas, fiordes, geleiras. Não dá para se conhecer tudo nessa vida. Então era também uma coisa para a gente estudar junto com as alunas, se preparar, planejar ir para lugares que nunca ninguém foi, nem eu, nem elas, justamente para ter o "uau!", o inesperado. Essa região é incrível, não é habitada, praticamente nada vive ali. Você não encontra ninguém nos canais.

E por que navegar pela Patagônia é um lugar tão mítico?

Milhares de navios afundaram aqui, gente morreu. Durante muito tempo, quando não existia o Canal do Panamá, lá era a única forma de ir do Atlântico para o Pacífico ou vice-versa. O clima muda a cada duas horas, as previsões de tempo têm no máximo doze horas. Imagina, nesse tempo, de veleiro, você não vai a lugar nenhum. Então é preciso aprender a lidar com essas situações de risco. Lá tem ainda uma outra característica, a do microclima. Você entra nos canais e as geleiras interferem, vêm os ventos que descem da montanha a 50, 55 nós, enquanto você está navegando a 15.

Isso sem contar o frio...

O frio lá é mais do que a sensação de gelado. Ele é um personagem forte, ele manda: não se pode ficar muitas horas exposto, pelo risco de hipotermia. E não pode nem pensar em cair do barco porque congela. Outra coisa importante: é preciso navegar durante o dia, porque há glaciares em vários lugares em que o gelo despenca. À noite não dá para ver e pode bater. Além disso, ainda tem os kelps, que algas enormes, com 30, 40 metros, que podem enroscar na quilha, no leme, na hélice do motor. É uma navegação que faz a gente se sentir vivo o tempo inteiro, porque exige atenção constante.

Você se apaixonou pela vela aos 30 anos. Como começou a velejar?

Um dia, vi uns senhores, com uns 60 ou 70 anos, não sei, que estavam arrumando um barco de 24 pés no seco, em Belo Horizonte, na montanha. Parei para conversar com eles e disse: "Vixe, essa baleia vai morrer fora d'água, leva ela pra água". Eles morreram de rir e a gente ficou umas três horas conversando. E então eles me convidaram para ir à Lagoa dos Ingleses, para conhecer aquele universo. Fui e tem uma coisa muito legal na vela: todo mundo chama você para velejar. Velejei em dois, três barcos e fiquei louca com o assunto. Saí de lá e fui para um shopping comprar tudo quanto era livro. Era a década de 1990, não tinha internet, Youtube, nada. Devorei os livros durante uma semana. Na outra semana, comprei um laser [barco a vela de classe olímpica].

Foi assim tão rápido?

Christina Amaral e colegas em seu barco - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Christina Amaral e colegas em seu barco
Imagem: Acervo pessoal

Quando começo um trem, minha filha, vou e mergulho, não quero nem saber se não sei nadar ou se a água está fria. E comecei a fazer cursos. Fiz curso de primeiros socorros, de elétrica básica, mecânica básica para aprender a ser independente, autônoma. E navegava na lagoa em Minas, que é pequenininha. Até que fui navegar com um amigo de Vitória para Angra, no meio da noite. Eu lá, olhando tudo, aquele céu cheio de estrelas, sem lua, estrela cadente, os plânctons na esteira do barco... Foi mais que incrível, sabe? Me deu um insight: é isso que eu quero, é onde eu quero estar para o resto da minha vida, no meio do mar navegando.

O que você fazia na época?

Eu sou chef, tinha restaurante, loja de comida congelada e escola de gastronomia. E, quando decidi que queria ir para o mar, me desfiz do restaurante, vendi tudo que tinha, doei o que não consegui vender e me mudei para Vitória, onde minha família tinha um apartamento de férias. Pensei: já que vou construir alguma coisa, construo pelo menos perto do mar para ficar cheirando maresia. Meu plano era trabalhar de chef enquanto construía o barco. E então fui no clube de vela local dar uma olhada. Cara, não deu uma semana eu já estava embarcada. Ia perguntando quem precisava de tripulante que não sabia nada.

Você foi batendo de barco em barco perguntando?

Sim. Vitória é um local em que muitos barcos estão em trânsito. Um senhor disse que em um mês ia para Olinda e que me aceitava. Me entregou a chave do barco dele e foi embora - sem nunca ter me visto. Isso foi em janeiro. Nesse mesmo teve mês uma regata de 12 dias e embarquei nela. Depois fiz a mesma coisa para Ilhabela e Santos. Quando aquele senhor chegou no barco dele, fomos para Olinda. De repente, em quatro meses, eu já tinha feito 5 mil milhas trabalhando em regatas. E então as pessoas começaram a brigar para me ter como tripulante. Pensei: se estão brigando, é porque eu sou boa nisso, e então já posso cobrar. E foi assim que comecei a viver disso.

Qual foi seu primeiro veleiro?

É meu primeiro e único, um Atol 22 pés. Ele está ancorado em Angra [dos Reis, no Rio de Janeiro], e é lá que chamo de casa. Depois de viajar tanto em barco dos outros, trabalhando, chegou uma hora em que pensei que tinha que navegar com o meu barco, né? Ele não tinha motor, mas fiquei dois anos velejando com ele. Depois de uns três anos morando a bordo, aconteceu um boom. Me chamaram para trabalhar na Europa e, aí, eu fiquei 12 anos lá, além de seis no Caribe. Fazia o verão no Mediterrâneo, o verão no Caribe e o verão no Brasil, eram três verões por ano.

Em que embarcações você trabalhou? Eram sempre veleiros?

Na maioria das vezes. Trabalhei também em dois iates grandes, de 100 e 147 pés. Mas gosto, mesmo, de veleiro. O trabalho geralmente era levar o barco de um lugar para o outro [o chamado delivery]. Fiz poucos charters, só no Brasil [passeios de barco em que o velejador trabalha como skipper, o "piloto"]. Já delivery, fiz vários. Fui oito vezes do Caribe para a Europa, por exemplo, em travessias cruzando o Atlântico. Fora Norte-Sul no Brasil, fiz um montão de vezes.

Qual o lugar mais incrível para o qual a vela a levou?

É a Patagônia mesmo, aquela coisa selvagem, inóspita, que não tem a mão humana é impressionante. Mas já fui para vários lugares lindos, como a Grécia. Lá tem muitas, muitas ilhas e mar navegável 80% do ano, azul, de um tom incrível. E em algumas ilhas ainda há pouco turismo. Também gosto muito de Los Roques, arquipélago na Venezuela, mas agora não dá mais para ir por causa de toda situação que o país enfrenta. No Brasil, a Ilha da Trindade, na direção de Vitória, mais ou menos, é incrível. Parece meio lunar, tem lugares de pedra, minério, mas tem coco verde. A água é de um azul meio violeta, uma cor que nunca vi em outro lugar.

E qual a viagem que você ainda quer fazer?

Quero ir para o Mar de Jade, que fica no Vietnã e tem seis mil pedras e ilhas que não são nem cartografadas ainda. E também para a Micronésia, que tem mais milhares de ilhas nesse nível, sabe? É para explorar, lugares que estão um pouquinho fora da curva.

Você está, com suas aulas de velas, tentando fazer com que o número de mulheres apaixonadas por navegar aumente. Esse universo é machista?

No Brasil, há 20 anos, era raro ter mulher nesse meio. Havia talvez meia dúzia de mulheres navegando com os maridos. Velejando sozinhas, depois, apareceram umas duas ou três. Mas quando fui para a Europa, em 2003, isso era comum. Na França você aprende a navegar quando aprende a nadar, é obrigatório. Ali eu fui tratada igual aos outros, exigiam de mim o que exigiam de todo mundo. Isso fez toda a diferença. Estava em um lugar em que não tinha que provar nada pra ninguém. Mas também fazia o meu trabalho direitinho. Então comecei a ser muito contratada como skipper. Todo seu trabalho fala por você mais do que o que você fala. Mas aqui na América Latina havia mais preconceito por eu ser uma mulher num meio muito masculino.

Foi por isso que você resolveu dar aulas?

Sim. Meu curso para mulheres começou quando eu conheci um casal que tinha comprado um barco e estava levando ele para casa. O homem tinha experiência e a mulher, quase nenhuma. Um dia eles pegaram um tempo muito ruim, ele ficou muito tempo no leme sozinho, porque o piloto quebrou, teve uma estafa e apagou de cansaço. Ela não sabia o que fazer, foi para dentro do barco e ficou lá enquanto as velas batiam. Eles correram um risco enorme. "Tive medo, tive pânico", ela me disse. E aí eu descobri que o que afastava as mulheres do mar era a falta do conhecimento. Porque o conhecimento liberta.

Porque ele traz o controle da situação?

Bom, no mar você aprende que não tem controle mesmo. Quem manda é a natureza [risos]. Mas, se você sabe o que pode fazer para manter a coisa estável, está tudo bem, é só fazer. Em 2005, vi um caso absurdo. Estava indo da Venezuela para a República Dominicana e ouvimos um pedido de socorro de uma mulher, em holandês, no rádio. Ninguém falava holandês, ela estava desesperada e só entendíamos "help". Até que um barco conseguiu falar com ela. A mulher não sabia nem olhar a posição dela no mar, nem dizer onde estava. Descobrimos depois o que tinha acontecido: ela for dormir e o marido caiu e desapareceu no mar. Ela acordou com o barco batendo. O cara, por rádio, a ensinou a olhar a posição e, como ela estava perto de Porto Rico, chamou a guarda costeira americana para resgatá-la. Depois a encontrei na marina em Santo Domingo e ela me falou que o casal já navegava fazia uns nove anos e que ela não sabia nada, o marido, que nunca mais foi encontrado, era quem fazia tudo. Ela só o acompanhava de vez em quando. Não é preciso saber voar para andar de avião, mas é preciso saber velejar para andar de barco.