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Eleições: por que algumas mulheres negras estão em candidaturas coletivas?

Em São Paulo, candidatura coletiva "Juntas - Mulheres Sem Teto" disputará pela primeira vez cargo de vereança - Divulgação
Em São Paulo, candidatura coletiva "Juntas - Mulheres Sem Teto" disputará pela primeira vez cargo de vereança Imagem: Divulgação

Nathália Geraldo

De Universa

10/10/2020 04h00

"A gente fez a chapa coletiva para dar voz às mulheres negras que estão na periferia. Não tinha sentido ser individual", resume a candidata Débora Lima, da chapa "Juntas - Mulheres Sem-Teto" (PSOL), que concorre à vereança em São Paulo (SP) nestas eleições municipais ao lado de Jussara Basso e Valdirene Cardoso. As três, mulheres, negras e periféricas, são a cara de uma nova estruturação no campo político conectada diretamente às pautas identitárias. Nestas eleições, ganham vozes candidaturas coletivas com integrantes com o mesmo perfil.

A configuração "vote em 1, leve 5" para o Poder Legislativo — os chamados mandatos coletivos - cresce há pelo menos duas eleições. Nas urnas, aparece só o nome e o número de uma pessoa. Mas, ali, está representada a proposta de um grupo de pessoas.

No caso das mulheres negras candidatas à vereança, a candidatura também tem outro propósito: o de cavar espaços de discussão e ocupar lugar no poder institucional para jogar luz a problemas que elas enfrentam no dia a dia. No Brasil, mulheres pretas e pardas representam 27,8% da população total, mas ainda têm baixa representatividade política. Segundo o Movimento Mulheres Negras, em 2016, o número de eleitas, tanto para vereadoras quanto para prefeitas, não chegou a 5%.

Unidas, as candidatas querem aumentar a representatividade e a proporcionalidade na Câmara. "Queremos ser ferramenta de luta dos povos que são estruturalmente excluídos. Mulheres, o povo negro, LGBTs, indígenas. É para levar diversidade", declara a candidata Aldenir Dida Dias, a Dida "das Marias", que faz parte do mandato coletivo pelo PSOL que se define como feminista e antirracista e concorre à vereança em Santos, litoral paulista.

Identidade amplia projetos políticos

Michelle Ferreti - Divulgação - Divulgação
Michelle Ferreti, codiretora do Instituto Alziras, analisa candidaturas coletivas de mulheres negras e contexto político
Imagem: Divulgação

Para a socióloga Michelle Ferreti, codiretora do Instituto Alziras, organização que tem o objetivo de desenvolver ferramentas para contribuir com o aumento da participação das mulheres na política, a tendência de candidaturas coletivas dentro dos partidos se associa a vários fatores: de fato, um avanço no debate identitário - especialmente cruzando gênero e raça - coloca mais mulheres, e mulheres negras, na disputa por cargos políticos. O contexto social, da política brasileira e dos partidos, são outros elementos da equação.

"Passamos agora por uma discussão sobre novas formas de ocupar espaços de poder. A democracia na história recente vem sofrendo certa desqualificação pública e os partidos políticos, também. Para retomar a proximidade com o eleitor, eles não querem mais construir lógicas personalistas e individuais, mas pensar em projetos políticos ampliados, que tenham outras vozes e interesses", analisa. "No caso das mulheres negras, é a representatividade da 'maioria silenciada', como dizia Lélia Gonzalez".

Jussara Basso, que é um dos rostos do "Juntas - Mulheres sem Teto", diz que a candidatura coletiva "denuncia a falta de espaço para as mulheres negras", frente à "carência de representatividade" a que elas são submetidas.

Coletivo Marias - Divulgação - Divulgação
Coletivo "Marias", formado por três mulheres negras (Dida, à esquerda) e uma branca, se define como feminista e antirracista
Imagem: Divulgação

Dida "das Marias" conta que tentou o mesmo cargo em 2016, sozinha. Desta vez, está ao lado de mais duas mulheres negras e uma branca (Cidinha Santos, Luciana Jorge e Thaís Helena).

As mulheres estão acostumadas a lutar de forma coletiva, é o que fazemos no movimento social.

"E com a candidatura coletiva, é possível aumentarmos o número de votos, porque as pessoas conhecem cada uma de nós e sabem que cada uma tem o compromisso de defender o que achamos certo no Plenário, se formos eleitas", explica.

Candidata pelo coletivo Elas (PCdoB), em São Luís, Maranhão, Josy Gomes conta que a ideia de unir cinco mulheres para pleitear o cargo de vereadora surgiu para "empoderar outras lideranças femininas" além dela, que tentou a vaga para deputada estadual, sozinha, em 2018.

"Faço parte dos movimentos de juventude, de mulheres, de mulheres negras. Então, nossas propostas são de educação, cultura, saúde e mobilidade urbana com transversalidade para esses perfis", explicou Josy, que divide a candidatura com Ana Raquel, Jaine Santos, Juliana Costa e Luiza Coelho.

Coletivo Elas - Divulgação - Divulgação
Em São Luís (MA), grupo de jovens tem origens diferentes; Josy Gomes (ao centro) explica que elas têm propostas para juventude e mulheres negras
Imagem: Divulgação

O coletivo tem três mulheres negras e duas brancas, todas com menos de 30 anos e moradoras de bairros diferentes. "Geralmente, o vereador acaba sendo só do bairro dele. Por sermos cada uma de uma região, isso amplia o debate sobre a cidade."

Mais à esquerda

Um estudo da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), uma organização que se define como suprapartidária, mapeou 98 candidaturas coletivas somando números de 2016 e 2018. Vale dizer que os mandatos coletivos não estão previstos na legislação brasileira.

No documento, os mandatos coletivos (e compartilhados, que funcionam de outra forma) são analisados por regiões do país, por partido e ideologia a que correspondem, por cargos pleiteados e por gênero dos candidatos. Não há informações que pontuem raça/cor dos candidatos, muito menos a intersecção de gênero e raça.

Para Universa, o coordenador do estudo e professor de políticas públicas Leonardo Secchi explicou, no entanto, que há um aumento significativo de candidaturas coletivas de mulheres negras, com base em dados preliminares, pesquisa em redes sociais e noticiário das eleições deste ano. "E elas têm exemplos, como da [deputada federal] Áurea Carolina, do Juntas [codeputadas em Pernambuco] e da Bancada Ativista, em São Paulo. São mulheres que tiveram sucesso com a estratégia", opina.

O coordenador diz que, segundo o estudo da Raps, os mandatos coletivos e compartilhados abrangem todo espectro político, sendo o primeiro formato "com leve tendência para esquerda, e o compartilhado, centro e direita". "A lógica do coletivo não é estar ali só pelo processo de participação, mas por uma questão de alinhamento ideológico e de defesa de causas sociais, com temas como ações contra violência da mulher, apoio à causa animal".

Elas não chegam sozinhas, e isso é estratégia

Para Michelle Ferreti, do Instituto Alziras, a estratégia, de mulheres negras e de outros grupos minorizados/minoritários, é resposta a um perfil que domina as cadeiras do Poder: o homem branco.

"Esses mandatos têm papel importante porque a política, tanto em função da história dos partidos políticos quanto do espaço em si, é dominada por homens. E homens brancos. Como a lógica é de conformação desse jeito de ser, na medida em que elas reivindicam esses lugares, passam por violências simbólicas e reais".

Não chegar sozinha a esses lugares é, assim, uma forma de se proteger. "Porque, quando elas chegam, a violência política de gênero e de raça cresce. Violências como o que aconteceu com Marielle Franco [vereadora assassinada em março de 2018] e Talíria Petrone [deputada federal que recorreu à ONU por receber ameaças de morte]. São recados que dizem que elas não são bem-vindas onde estavam por certos grupos."

Desafios

Para Michelle, as mulheres negras que se candidatam em coletivos nesta eleição terão muitos desafios pela frente, além de serem possíveis alvos de violência política de gênero e de raça. Um deles tem a ver com a conformação do formato coletivo para os espaços institucionais, que não foram criados para ter esse tipo de mandato. Converter o apoio dos eleitores que se identificam com as pautas em votos pode ser outra preocupação para as candidatas.

"Os movimentos de mulheres e dos negros estão fazendo mais que os partidos, na verdade, apesar deles. Temos avanços importantes, como o da divisão proporcional do fundo eleitoral e partidário para os candidatos negros. Já houve uma ampliação do debate publico, agora é preciso ver se isso vai se converter em votos".

Ela aponta que os avanços também passam por alterações nas regras do sistema político e eleitoral. "Elas desfavorecem certos grupos, fazem com que sejam muitos candidatos com pouco tempo para o debate e isso torna a competição mais desigual para as mulheres. Para as negras, nem se fala. Além disso, é preciso que a gente fale de uma reforma do sistema político, para que as parlamentares, negras, consigam avançar com as pautas que defendem no Congresso".