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Quem são as mulheres indígenas que buscam representatividade nesta eleição

Ariene Susui, candidata a vereadora em Boa Vista pela Rede - Shigeaki Alves
Ariene Susui, candidata a vereadora em Boa Vista pela Rede Imagem: Shigeaki Alves

Letícia Sepúlveda

Colaboração para Universa

02/10/2020 04h00

As eleições municipais de novembro terão um recorde de candidatas mulheres: 34% do total. Já o número de candidatos indígenas aumentou consideravelmente desde as últimas eleições —de 1.715 para 2.167, um acréscimo de 26,3%—, o que torna a proporção de candidatos indígenas praticamente igual à proporção dessas pessoas na população nacional (0,4%, segundo dados do Censo 2010). E a proporção de mulheres entre os candidatos indígenas também cresceu. Elas passaram de 27,5% para 32,4% do total.

Essa representatividade, no entanto, ainda não se reflete ainda nos postos de poder. Atualmente, há apenas uma representante indígena no Congresso Nacional, a advogada Joênia Wapichana (Rede), eleita deputada federal pelo estado de Roraima, em 2018. Joênia foi a primeira mulher indígena a alcançar o posto.

De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2016, 473 mulheres se candidataram. Mas apenas 28 foram eleitas como vereadoras e uma como prefeita.

"Não somos personagens de livros de história"

Para Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e primeira mulher indígena a concorrer em uma chapa à presidência, em 2018, como vice de Guilherme Boulos (PSOL), o Brasil ainda é um país machista e patriarcal, e essa realidade dificulta o acesso das mulheres a cargos públicos.

"Historicamente, sempre fomos liderados por homens. Hoje, as mulheres chegam aos partidos e não têm prioridade, dificilmente têm apoio para fazerem campanhas, e muitas são coagidas a se candidatar apenas para completar cotas. Vejo a igualdade nesses espaços como um futuro distante, porque, para isso, precisamos ter uma mudança de consciência geral", diz ela.

A representatividade é ainda mais importante para as mulheres indígenas, diz Kandara Pataxó, candidata a vereadora em Santa Cruz Cabrália (BA) pelo PSD. "Ter uma mulher indígena eleita é poder mostrar para os brasileiros que nós não somos personagens de um livro de história escrito por não indígenas, que somos seres humanos, merecemos respeito e temos voz."

As candidaturas atreladas aos povos indígenas muitas vezes ultrapassam a questão política porque também estão relacionadas à luta por sobrevivência diante das ameaças, remoções forçadas, contágio de doenças e outros tipos de problemas enfrentados pelas populações indígenas.

"Além de lutarmos nos espaços de mobilização, também precisamos lutar com a caneta e com o papel, principais armas que encontramos para resistir", afirma Ariene Susui membro do povo Wapichana, e pré-candidata a vereadora em Boa Vista (RR) pela Rede Sustentabilidade.

As candidatas indígenas lutam para se desvincular da imagem romântica vinculada a elas desde os tempos do romance "Iracema", em que José de Alencar descreve a protagonista como "a virgem dos lábios de mel", cujos cabelos eram "mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira".

Além de Kandara Pataxó e Ariene Susui, Universa conversou com mais três mulheres indígenas que lutam por direitos, visibilidade e pelas demandas de seus povos e buscam se eleger em novembro.

Kandara Pataxó, 39, membro da aldeia Juerana, da Terra Indígena Coroa Vermelha (BA), presidente da Associação de Mulheres Indígenas Pataxó e candidata a vereadora em Santa Cruz Cabrália (PSD-BA).

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Kandara Pataxó pré-candidata a vereadora pelo PSD
Imagem: Arquivo pessoal

"Sou filha de duas lideranças, então, desde criança, vi meus pais lutarem e vivenciei muitas alegrias e tristezas do meu povo. Minha mãe, Yamany Pataxó, foi cacica da minha aldeia e a primeira mulher a se tornar presidente do Conselho de Caciques da Bahia.

Desde os meus 16 anos, me dedico à luta pelos direitos das mulheres e comecei a querer que as indígenas tivessem voz ativa dentro das comunidades. Sempre me disseram que eu era rebelde, e gosto dessa rebeldia. Quero que outras mulheres possam tê-la também. Em 2017, organizei uma marcha com a presença de indígenas daqui do extremo sul da Bahia pelo fim da violência doméstica [De acordo com dados da Secretaria Especial de Assuntos Indígenas, entre 2006 e 2017, mais de 5.000 casos de violência contra mulheres indígenas ocorreram dentro de suas residências, e mais de um terço de seus agressores eram parceiros ou ex-parceiros].

Enquanto mulher indígena, vi a necessidade de ajudar e de ser porta-voz de minhas parentes que sofrem violência. Tive muitos embates dentro do meu território por conta dessa luta. Os caciques acharam que eu estava invadindo um espaço que até então tinha as regras ditadas por eles. Sempre falo que nós queremos lutar junto com os homens, mas que eles devem ouvir a nossa voz. Acho que, juntos, conseguimos muito mais.

Em 2018, fui a Salvador buscar ajuda para implantar o primeiro Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram), preferencialmente para indígenas do país. E, para minha felicidade, fui amparada. Ganhamos também um carro para o atendimento das vítimas e um kit de equipamentos.

Se for eleita, quero que meu mandato seja coletivo, das mulheres indígenas e não indígenas, com a implantação de uma equipe de saúde multidisciplinar e com a criação de políticas públicas de combate ao racismo e de apoio ao movimento LGBTQ+."

Val Eloy, 39, membro do povo Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue (MS) e candidata a coprefeita de Campo Grande pelo PSOL, ao lado de Cris Duarte

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Val Eloy, candidata a coprefeita de Campo Grande
Imagem: Arquivo pessoal

"Entrei na militância em 2011, quando me deparei com algumas famílias de meu povo que estavam morando de aluguel aqui em Campo Grande. Comecei a fazer uma ação voluntária com eles, todos os finais de semana, para orientá-los com algumas burocracias. No começo, eram 50 famílias, e uma delas seria desabrigada por não conseguir pagar o aluguel. Fiquei muito triste e comovida com a situação.

Fomos atrás de um local para poder chamar a atenção do poder público. Achamos uma área da prefeitura que estava totalmente abandonada e fizemos uma ocupação. Me tornei a primeira cacica da comunidade e, em 2015, conseguimos a regularização do espaço.

Desde criança, via que só homens participavam das reuniões políticas do nosso território: as mulheres sempre ficavam de fora. Sou a primeira mulher Terena a fazer parte de uma chapa municipal.

Também é a primeira vez que teremos um plano de governo construído com a presença das vozes de nossas lideranças, porque, aqui em Campo Grande, sempre vi os prefeitos chegarem com o plano de governo pronto, e nós, indígenas, tínhamos que nos adequar.

Neste contexto da pandemia do coronavírus, estamos com barreiras sanitárias desde março, dependendo de ações voluntárias e de doações, porque, em nenhum momento, o governo fez um planejamento de como trataria o avanço do vírus dentro das comunidades indígenas.

Ser mulher indígena no Brasil, em um momento de pandemia e governado por Jair Bolsonaro, é ser resistência. É muito difícil ver tantas vidas serem levadas em nossas aldeias. Estamos perdendo anciões que para nós significam muito, são bibliotecas vivas. [De acordo com dados do Conselho Terena, 717 indígenas da Terra Indígena Taunay-Ipegue já foram contaminados pela Covid-19. A princípio, apenas um médico atendia toda a região, com cerca de 5.000 moradores. A organização humanitária Médicos sem Fronteiras só conseguiu atuar no local depois de muita pressão da comunidade e de organizações indígenas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, que, primeiramente, não havia autorizado a ajuda].

No contexto urbano, também temos falta de assistência em relação à saúde. Somos cerca de 17 a 18 mil indígenas vivendo na cidade e tínhamos um Polo Base de saúde que foi fechado sem que consultassem o nosso povo.

Além da saúde, moradia e educação também fazem parte de nossas pautas mais urgentes. Moradia porque precisamos regularizar nossas áreas, para que tenhamos lugares dignos para morar, e educação porque vejo como prioridade a língua materna. Não é porque moramos na cidade que precisamos perder a nossa cultura. Pelo contrário, temos que mantê-la viva."

Ariene Susui, 23, membro do povo Wapichana, da comunidade Truarú da Cabeceira (RR) e candidata a vereadora em Boa Vista pela Rede Sustentabilidade

"Sou ativista indígena desde os 16 anos e atuei no Conselho Indígena de Roraima como coordenadora do departamento de comunicação. Estudei até os 18 anos na minha comunidade e sempre tive o sonho de entrar em uma universidade. Me mudei para a capital em busca do meu sonho e, no ano passado, me formei em Comunicação Social pela Universidade Federal de Roraima.

Neste ano, iniciei meu mestrado com uma pesquisa sobre comunicadores indígenas que usam as redes sociais para tornar visível a luta de nossos povos. Sempre militei para que outros jovens também pudessem ter a oportunidade de entrar na universidade. Representatividade importa e muito nesse processo.

Acredito que o machismo é a principal dificuldade que as mulheres encontram para entrar na política, porque sempre ouvimos que não temos capacidade de enfrentar uma campanha eleitoral e de ocupar cargos públicos.

Temos um número de mulheres muito reduzido na política brasileira no geral e, infelizmente, no segmento de mulheres indígenas, o número é ainda menor. Mas acredito que as candidaturas femininas têm a capacidade de tornar nossa luta visível.

Em meio à pandemia do coronavírus, perdi minha mãe, uma de minhas principais inspirações, que há anos se tratava de diabetes. Ela não foi contaminada pela Covid-19, mas, por conta do sistema de saúde sobrecarregado, teve assistência reduzida.

Precisamos nos mobilizar todos os dias, porque nosso território é invadido constantemente e precisamos proteger a floresta amazônica. Além disso, aqui em Boa Vista, não temos uma política pública para os indígenas da cidade. As pessoas acreditam que somos indígenas só enquanto estamos dentro de nossas comunidades.

A sociedade ainda tem a visão do indígena de 1500, sem participação política e marginalizado. Esquece o processo de colonização que ela própria fez com o nosso povo. Mas a realidade é que hoje estamos dentro das universidades e na luta por espaços políticos. Também é preciso ter muito cuidado nessa campanha eleitoral porque a pandemia ainda não acabou, apesar de muitos candidatos estarem saindo às ruas. É preciso ter responsabilidade, e nós, indígenas, que perdemos muitos parentes sabemos que o vírus realmente mata."

Sônia Barbosa, 47, liderança da Terra Indígena Jaraguá e candidata a vereadora de São Paulo, junto com outras duas indígenas, Patrícia Jaxuka e Tamikuã Txihi, pelo Mandato Coletivo Jaraguá é Guarani (PSOL)

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Sônia Barbosa, 47, liderança da Terra Indígena Jaraguá e candidata a vereadora em São Paulo
Imagem: Arquivo pessoal

"Em 2012, comecei a entender melhor as questões políticas que envolviam a comunidade e comecei a lutar por um futuro melhor para todos os nossos parentes. Em setembro de 2013, nós fechamos a Rodovia dos Bandeirantes em manifestação pela garantia de nossos direitos. No mês seguinte, também fechamos a avenida Paulista pela nossa causa.

Começamos a perceber que, quando íamos para as ruas, tínhamos visibilidade. Porque, até então, éramos invisíveis e os órgãos públicos não nos davam atenção. Também vimos que as denúncias por meio das redes sociais davam certo, já que as pessoas vinham até as aldeias para saber o que realmente estava acontecendo.

A nossa candidatura é importante para que as pessoas comecem a entender quem é o povo guarani de São Paulo, para que respeitem essa população como uma população milenar, que não chegou aqui de ontem para hoje. A Terra Indígena Jaraguá está dentro da cidade de São Paulo, mas não fomos nós que chegamos até aqui, e sim a cidade que foi avançando sobre nossos territórios.

Demarcação de terras, saúde, educação, saneamento básico e incentivo da cultura e da arte dos povos originários são as principais pautas da nossa candidatura. Também precisamos trabalhar com os jovens das nossas aldeias, porque, infelizmente, muitos têm problemas relacionados às drogas e ao alcoolismo, por não terem espaço na sociedade.

Temos também uma luta que envolve a nossa habitação. Só vivemos em condições precárias porque não temos um órgão público que cuide dessa questão.

A Terra Indígena do Jaraguá enfrenta duras questões relacionadas à demarcação de terras, muito importante para a preservação da Mata Atlântica que ainda resta na região, essencial para a nossa permanência.

Neste contexto de pandemia, lutamos pela criação do hospital de campanha que foi instalado no nosso Centro de Educação e Cultura Indígena. Ele faz o atendimento de casos leves de coronavírus. Mas, se tivéssemos um caso grave, a pessoa poderia ter morrido. [O local conta com 30 leitos de enfermaria e nenhum leito de UTI. De acordo com dados da Frente de Apoio aos Povos Indígenas do Brasil (Fapib), em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai), um em cada quatro indígenas já testou positivo para o coronavírus no estado de SP]."

Amaue Jacintho, 34, membro Guarani Nhandewa, da Terra Indígena Laranjinha (PR) e candidata a vereadora em Londrina pela chapa coletiva Voz das Mulheres, ao lado de Angela da Silva Leonardo e Vânia Lucia da Silva, pelo (PSOL)

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Amaue Jacintho, candidata a vereadora em Londrina (PR)
Imagem: Arquivo pessoal

"Nasci no interior do Paraná, em Santa Amélia, na Terra Indígena Laranjinha. Meu pai sempre foi uma liderança e chegou a ser cacique. Então, desde que me conheço por gente, estou incluída nessa militância dentro do movimento indígena, já que ele sempre bateu na tecla da importância da política e de ocuparmos espaços.

Saí da minha aldeia aos 13 anos, quando meus irmãos mais velhos quiseram ir para Londrina com o sonho de continuar os estudos. Quando você é indígena e chega à cidade, ou você se fortalece, ou esquece quem você é, porque encaramos muito racismo e discriminação.

Em 2014, consegui passar no vestibular indígena e ingressar no curso de ciências sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL). O que me fez ter coragem para entrar na vida política foi o contexto histórico dos povos indígenas. Por ter ingressado no ensino superior pelo vestibular indígena, também tenho a responsabilidade de dar um retorno para essa população, porque ocupei um espaço que foi resultado da luta coletiva de todos os povos indígenas do Paraná.

Faço parte da Articulação dos Estudantes Indígenas da UEL e, quando surgiu a ideia de a gente lançar um candidato voltado ao movimento indígena, ofereci meu nome.

A preservação ambiental é nossa principal pauta. O Paraná está enfrentando uma crise hídrica muito séria, que não irá demorar muito para chegar aqui em Londrina. Queremos recuperar as nascentes dos rios, que estão quase esgotadas. Queremos também fazer um trabalho de recuperação e de preservação das matas no município inteiro.

Também é preciso fazer um trabalho de conscientização com a população porque as pessoas precisam ter noção da crise ambiental em que estamos inseridos —e que ela pode levar à extinção da vida humana. Em relação à pandemia, estamos lutando pela defesa de benefícios como o Bolsa Família e o auxílio emergencial porque sabemos o quanto são necessários, até mesmo para além dessa situação.

Indígenas serem eleitos neste momento é uma questão de sobrevivência. Estou em uma cidade formada por ruralistas e da região sul do país, considerada uma das regiões mais racistas do Brasil. Acredito que muito do preconceito que sofremos é por conta da invisibilidade e da ignorância porque, quando as pessoas começam a nos conhecer de fato, mudam de ideia e inclusive passam a admirar nossos povos."