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Hospital ou delegacia: para onde ir primeiro em caso de violência sexual?

Especialistas concordam que a mulher vítima de violência sexual deve ser bem acolhida, no hospital ou delegacia - Getty Images/iStockphoto
Especialistas concordam que a mulher vítima de violência sexual deve ser bem acolhida, no hospital ou delegacia Imagem: Getty Images/iStockphoto

Luiza Souto

De Universa

16/09/2020 04h00

Leticia*, 31, descobriu no mês passado que a filha adolescente, de 13 anos, foi estuprada pelo marido de sua prima dos seis aos nove anos de idade. A menina escondeu a dor de toda a família até se abrir com uma outra prima, neste ano. A parente logo acionou a família. Leticia, que é vendedora, conta que levou quatro dias para assimilar toda a informação, e então decidiu por conta própria levar a filha à delegacia de polícia em Capivari, onde mora, a 134 quilômetros de São Paulo, para fazer a denúncia.

A mãe seguiu o caminho orientado por autoridades em caso de violência sexual: procurou uma delegacia para fazer a denúncia. A atitude foi decisiva para o homem ser preso no último dia 8.

Mas, se o crime tivesse acabado de acontecer, Leticia poderia também ter buscado logo um hospital, antes mesmo da polícia, para garantir medidas preventivas de saúde para a filha, como a administração de pílula do dia seguinte e de coquetel para evitar o HIV. A profilaxia com o uso de antirretrovirais deve ser iniciada no menor prazo possível, com limite de 72 horas da violência sexual.

"Como minha filha falou que os estupros pararam há três anos, fui logo à polícia porque já não iam achar mais vestígios nela", justifica a mãe.

A delegada Maria Luisa Dalla Bernardina Rigolin, titular da Polícia Civil de Capivari, que recebeu a denúncia e fez a prisão do acusado, ensina que o caminho que Leticia fez, de procurar diretamente a delegacia em caso de violência sexual, é mesmo o aconselhável nesse caso, pois não havia uma lesão recente.

"Ouvi um caso recente de uma colega delegada em que um bebê foi encontrado com sangue e levado para o Instituto Médico Legal, para o exame sexológico, quando na verdade esse bebê teria que ir para o hospital. Ele precisou, inclusive, fazer cirurgia. Mas no caso da filha de Leticia, que não foi uma violência sexual recente, a vítima deve procurar a delegacia, para, em seguida, a gente encaminhar para fazer o laudo no Instituto Médico Legal", explica a delegada.

Nem toda vítima que procura a delegacia, no entanto, é encaminhada para o IML.

"O laudo sexológico feito no IML vai comprovar, por exemplo, se houve rompimento do hímen, que foi o que aconteceu com a filha da Leticia, e se há vestígios de sêmen. Mas para isso, é preciso que o exame seja feito em até 72 horas. Caso contrário, a vítima nem seria encaminhada, principalmente quando a criança é muito novinha, para não traumatizar ainda mais", afirma a delegada.

Chorava e falava para deixá-la em paz

A vendedora conta que, quando a filha tinha sete anos, mudou completamente de comportamento. De menina alegre, ficou agressiva e acusava a mãe de não lhe dar os devidos cuidados.

"Achei que ela estava passando por bullying na escola, porque de repente ficou triste, passou a tirar notas baixas e me atacava dizendo que não gostava de mim e que eu não era uma boa mãe, porque minha vida era só o trabalho", explica Leticia, que tentou pedir ajuda à direção da escola pública onde a menina cursa hoje o sétimo ano.

"Ouvi da diretora que eu tinha que escolher entre o trabalho e ela."

No ano passado, a menina passou a se automutilar e tomava cerca de cinco longos banhos durante o dia. Também escondia o corpo. Mesmo no calor, usava roupas largas e blusa de frio.

"Quando eu questionava o que estava acontecendo, ela chorava e falava para deixá-la em paz", diz a mãe.

Ela então começou a levar a filha a uma psicóloga, mas, mesmo assim, a menina não se abriu para a profissional. "A psicóloga apenas disse que minha filha não tinha perspectiva de vida e que eu deveria cuidar melhor dela, senão ela poderia cometer suicídio", diz Letícia, que parou de levar a menina às consultas.

Quarto cheio de doces

Enquanto a mãe e o padrasto trabalhavam fora, a menina e o irmão mais velho, hoje com 17 anos, ficavam com a avó de Letícia. Nessa casa, além da idosa, moram uma prima dela e o agressor, marido dessa parente. O homem tinha em seu quarto, nos fundos da casa, diversos tipos de doces e atraía a criança para lá quando ninguém estava presente.

O homem, de 48 anos, vai responder por estupro de vulnerável. A polícia informou que há mais dois boletins de ocorrência contra ele, no município de Indaiatuba, a 50 quilômetros de Capivari, por ter tentado abusar de uma sobrinha.

Hospital ou delegacia?

A delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, endossa a importância de procurar os dois canais em caso de estupro, mas deixa claro que essa é uma decisão da vítima:

"Se ela preferir ir a uma delegacia porque está mais perto, por exemplo, a decisão fica a cargo dela. Ela pode ir para a delegacia e aí então ser encaminhada para o hospital, mas a gente sempre recomenda que ela procure o hospital para receber os primeiros socorros necessários, para que ela não coloque em risco sua própria vida".

A delegada informa ainda que, mesmo após a vítima ter passado pelos primeiros socorros no hospital, no caso do estupro recente, ela ainda assim será encaminhada para laudo pericial no IML, onde a equipe de atendimento vai constatar se há vestígios do autor, como a pele dele na unha da mulher. Há hospitais de referência como o Pérola Byington, em São Paulo, em que a vítima pode fazer os dois procedimentos no mesmo lugar: ser atendida por médicas legistas e receber cuidados médicos.

Na avaliação da enfermeira Paula Vianna, uma das coordenadoras do grupo Curumim, de Recife, que trabalha com atenção à saúde sexual e reprodutiva, a violência sexual primeiro passa por uma questão de saúde. E lembra da Lei do Minuto Seguinte, de 2013, que assegura que as vítimas deste crime tenham atendimento emergencial, integral e multidisciplinar gratuito no SUS, com diagnóstico, tratamento das lesões físicas, amparo médico, social e psicológico e profilaxia, sem a necessidade de apresentar o boletim de ocorrência ou qualquer outro tipo de documento.

"O mais importante é a vítima receber esse atendimento integral. A gente sabe que a maioria dos estupros ocorre em ambiente familiar, por pessoas próximas, principalmente contra meninas e adolescentes, e entendemos a dificuldade dessa mulher em conseguir acessar os serviços de saúde. Quando procura, ela busca acolhimento. Ela precisa estabelecer um vínculo de segurança com aquele lugar", explica a enfermeira.

Leticia diz que ela e sua filha foram bem recebidas ao fazer a denúncia.

"Nos sentimos acolhidas na polícia e no IML, mas não é uma situação fácil de lidar", afirma Leticia.

Busca por hospitais gera notificação compulsória

A recomendação do Ministério da Saúde para os casos de violência sexual é o ágil atendimento à mulher na rede de saúde dentro de 72 horas da agressão, para que a vítima possa ter acesso a medidas de contracepção e evitar doenças sexualmente transmissíveis. E desde 2003, profissionais da saúde devem notificar de forma compulsória a violência sexual à vigilância em saúde municipal, para que a vítima seja encaminhada para os serviços de referência em saúde e rede de proteção.

Essas notificações vão para um banco de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Somente no município de SP, entre 2017 e 2019 houve um aumento de 137% no número de notificações de violência sexual à mulher realizadas pelas unidades de saúde (púbicas ou privadas): de 1.220 para 2.894.

Por email, o Ministério da Saúde explica que a notificação de violência sexual é importante para garantir o cuidado integral às vítimas, além de auxiliar no levantamento de dados que subsidiem ações para o combate ao crime.

No Brasil, no período de 2015 a 2019* (dados preliminares) as notificações aumentaram em 63% no período de 2015 a 2019 (de 18.112 para 29.589), totalizando 162.367 casos de violência sexual contra mulheres registrados nos sistemas de saúde no período. Os dados do ano passado são preliminares em razão da entrada de novos registros de notificação e da limpeza do banco de dados.

A pasta informa que os números não significam, necessariamente, um aumento no crime, mas que, informa o texto, "a vigilância de violências e acidentes no Brasil encontra-se em processo de expansão, com aumento de unidades de saúde e municípios que notificam violências".

Registro também vai para a polícia

Todas essas informações enviadas pelos agentes de saúde são sigilosas. Mas em dezembro último foi publicada nova lei que obriga profissionais de saúde a comunicar o crime também à Secretaria de Segurança Pública do local, em 24 horas, em casos confirmados e indícios de violência contra a mulher, também para fins de estatística e prevenção.

E em agosto último, o Ministério da Saúde publicou ainda uma portaria que obriga profissionais de saúde a avisarem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação em razão de estupro.

No ano passado, quando a lei foi publicada, houve discórdias de diversos setores. De um lado, congressistas defenderam que a medida tornaria mais eficiente o combate à violência contra a mulher. Por outro lado, o Planalto, e ainda grupos em defesa da mulher e coletivos de esquerda argumentaram que o projeto expõe a vítima contra a vontade e pode inibi-la de buscar ajuda médica.

A delegada Jamila Jorge lembra que muitas vítimas não querem que os crimes sejam investigados, por medo de retaliação do agressor, por exemplo.

"Não sei até que ponto a lei veio ajudar, porque o crime de estupro é extremamente pernicioso, e muitas vezes deve ficar a cargo da mulher de querer ou não denunciar. A subnotificação é terrível, mas tem que se pensar na vítima, e temos a tendência de jurisdicionar tudo e esquecemos que um bom atendimento e acompanhamento é mais importante que o BO (boletim de ocorrência) em si."

* O nome foi trocado para preservar a identidade dos envolvidos.