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Grupo cria #MeTooBrasil após denúncias de abuso sexual no cinema nacional

Mulheres usam a hashtag #MeToo em protesto em Paris contra abuso sexual, em 2017; agora, termo dá nome a movimento brasileiro - Bertrand Guay/AFP
Mulheres usam a hashtag #MeToo em protesto em Paris contra abuso sexual, em 2017; agora, termo dá nome a movimento brasileiro Imagem: Bertrand Guay/AFP

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

01/09/2020 17h51

Um grupo de sete juristas criou, nesta semana, o movimento #MeTooBrasil — o nome significa "eu também", em português, e foi emprestado do movimento homônimo que nasceu há três anos, nos Estados Unidos, para denunciar episódios de assédio e violência sexual em Hollywood.

A advogada Isabela Del Monde, uma das fundadoras, disse a Universa que a versão nacional do #MeToo nasce da mesma forma que fora do país: na esteira de denúncias na indústria audiovisual brasileira. Em reportagem do site The Intercept Brasil publicada na sexta-feira (28), 18 mulheres disseram ter sido abusadas sexualmente pelo produtor de cinema e curador de festivais internacionais Gustavo Beck.

No site do #MeTooBrasil, divulgado à imprensa ontem, o grupo promete prover "apoio jurídico, psicológico e socioassistencial" às vítimas e encaminhar suas denúncias aos órgãos competentes.

"[O site] traz a possibilidade das vítimas contarem suas histórias simplesmente com a intenção de desabafar, de terceiros ajudarem mulheres que sofreram violências e, principalmente, de levar essas denúncias para as autoridades", explicou a advogada.

Luciana Terra, que também é advogada e fundadora do #MeTooBrasil, disse a Universa que, apesar de o movimento ter nascido a partir das denúncias no universo do cinema, "a plataforma foi criada para dar visibilidade e amplificar a voz de mulheres e meninas vítimas de violência, seja no ambiente corporativo, seja por líderes religiosos, autoridades, familiares ou qualquer outra forma de abuso sexual".

No site, é possível selecionar as opções "preciso de ajuda", para fazer uma denúncia de violência e solicitar atendimento, e "quero ajudar", onde profissionais como médicos, psicólogos, assistentes sociais e advogados podem se cadastrar como voluntários para atender as vítimas.

Luciana Terra explica que a iniciativa conta com mais de 3,5 mil voluntárias, atuantes nas áreas citadas acima, e previamente inscritas por meio do Projeto Justiceiras, parceiro do movimento #MeTooBrasil. A ideia, agora, é ampliar essa rede.

O #MeTooBrasil é coordenado pelas advogadas Isabela Guimarães Del Monde, Gabriela Souza, Marina Ganzarolli e Luanda Pires, em parceria com o Projeto Justiceiras, fundado pela Promotora de Justiça Gabriela Manssur e pelas advogadas Luciana Terra e Anne Willians. A iniciativa tem apoio da Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) e da agência Mega Models.

Entenda o caso

O pontapé inicial dos depoimentos deu-se em 13 de maio, quando a americana Cat de Almeida publicou em sua página um post no qual sugere que sofreu abuso sexual de Beck e diz que queria falar sobre a sua experiência de "agressão sexual, machismo e opressão" na indústria do cinema. Também digitou que "estupro é um crime violento onde o sexo é a arma".

Ex-namorada de Beck, a cineasta Deborah Viegas, também replicou a mensagem e acrescentou: "Se alguém quiser partilhar qualquer experiência em off, sintam-se livres pra me mandar uma mensagem privada".

Segundo o The Intercept, 18 mulheres divididas em seis países repetiram histórias semelhantes de violência sexual, física ou psicológica por parte de Beck.

Curador e jurado em alguns festivais de cinema, Beck é visto como influente nesses espaços e considerado referência da América Latina em eventos internacionais de cinema.

Atualmente, ele mora em Portugal e até o ano passado trabalhava como programador convidado do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, na Holanda, e como curador nos festivais Viennale, na Áustria, e Bafici, na Argentina.

"Abaixou as minhas calças e as dele"

Segundo a reportagem, o caso de Cat de Almeida aconteceu em 2017, quando participava com o então namorado de Bafici em Buenos Aires. Beck fazia parte do comitê de seleção do Buenos Aires Lab, o BAL, laboratório do festival criado para incentivar o desenvolvimento de filmes latino-americanos. Na época, ela tinha 24 anos e ajudava na produção do filme do seu então companheiro, o cineasta mexicano Pablo Escoto.

Dizendo estar interessado em conhecer mais o trabalho do casal, Beck teria convidado a dupla para um happy hour, mas, como o namorado de Almeida tinha um compromisso, ela acabou indo sozinha encontrá-lo.

Após algumas taças de vinho, conta, ele a convenceu a continuar o papo no apartamento. "Desde que entramos, o contato passou a ser insistentemente físico, e eu dizia 'isso não vai acontecer'", contou. "Até que ele agarrou meu cabelo e me deu uma mordida na parte de trás da cabeça. Eu fui para a porta, ele bloqueou a minha passagem e me empurrou. Então, abaixou as minhas calças e as dele". Almeida disse que abriu a porta e fugiu.

Depois disso, Almeida conta que Beck ofereceu ajuda para o filme do seu namorado. O casal recusou. Atualmente, ela trabalha num projeto de cinema com crianças e adolescentes no México e diz que encoraja as meninas a batalharem por reconhecimento profissional sem a necessidade de suporte masculino - especialmente por ofertas como as que diz ter recebido de Beck.

Já a assistente de produção executiva Denise Fait conta que, em 2015, trabalhava no festival brasileiro Olhar de Cinema, em que Beck era o curador. Após tomar vários drinques em uma festa, ela não lembra como chegou no quarto dele no hotel. Fait diz que concordou em fazer sexo, mas algumas cenas não estão muito claras na sua cabeça. "Não foi forçado, mas eu estava bêbada", contou.

A assistente de produção relata que nunca esqueceu de como ficou assustada com a "selvageria desnecessária" dele. "Eu lembro que ele me mordia bastante, principalmente a bunda, e isso me machucava. Com certeza, se eu tivesse dito 'não' para ele, dentro daquele quarto, ele teria sido ainda mais violento", disse. "Sabe quando você está diante do demônio e pensa em ficar amiga dele para não confrontá-lo?".

Pela manhã, Fait disse que Beck a mandou sair logo do quarto, antes que alguém do festival visse. Nos dias seguintes, durante todo o evento, ela diz que ele passou a esnobá-la. "Ele pediu para eu não contar para ninguém e assim eu fiz. Fiquei com medo de comprometer ele como curador do festival. Hoje eu tenho entendimento claro de que eu fui levada para o quarto de hotel, e ele devia fazer isso com uma por dia", conta.

Se a vítima está sob efeito de álcool ou de algum entorpecente quando é abusada e incapaz de demonstrar consentimento ou de se defender, o caso caracteriza estupro de vulnerável.

Ofereceu drogas

A cineasta brasileira Thais Prado conta que precisou empurrá-lo e sair correndo de dentro de um espaço reservado durante uma festa de um filme que Beck estava produzindo, em Berlim, em 2016. Ela diz que ele a chamou até um local para lhe "mostrar algo" e ofereceu drogas, mas ela recusou. "Foi então que ele me empurrou contra a parede e começou a me beijar".

Prado diz que tentou se desvencilhar e que contou com a ajuda de uma mulher com quem Beck estava na festa, que apareceu naquele momento. "Se não fosse ela, provavelmente eu teria passado por uma situação muito difícil. E, se eu tivesse me drogado, também estaria mais suscetível", acredita.

A belga Louise diz que não conseguiu evitar o estupro. O caso teria ocorrido quando ela trabalhava em um festival de cinema na Bélgica em que Beck era jurado, em 2015. "Nós estávamos bebendo, ele me convidou para ir ao quarto dele no hotel e eu fui". Louise contou que aceitou o convite levando em consideração a promessa de "uma noite gostosa".

Após entrar no quarto, ela e Beck começaram a fazer sexo consensual, mas ela diz que a noite se transformou num pesadelo. Louise tentou desistir, após se incomodar com a brutalidade com que ele a tratava. Quando disse que iria embora, conta, Beck a agarrou pela cintura e a jogou de volta na cama, não a deixando sair. Com medo de "apanhar na cara ou de forma pior", Louise ficou.

"Parecia uma eternidade, cada vez com mais violência e brutalidade. Os tapas não foram leves como as palmadas que alguns casais curtem, eles doeram terrivelmente e queimaram. As mordidas foram profundas. Os movimentos dele me deixaram machucada, foi muito violento", descreveu.

Depois daquela noite, Louise diz que Beck ainda tentou contato com ela pelo Facebook. Ao vê-la em outros festivais algum tempo depois, reforçou o convite para que se encontrassem novamente, mas ela recusou. Levou dois anos até ela se convencer de que havia sido vítima de uma violência sexual.

Não parou depois da recusa

Já a cineasta Ana conheceu Beck em 2011, na festa de um cineclube no Rio de Janeiro. A convite dele, saíram do evento para um apartamento. Como no caso de Louise, a noite começou com sexo consensual, mas, segundo o relato de Ana, teria se transformado em estupro.

"Depois que chegamos lá, ele sinalizou que queria sexo anal, e eu disse que não. Ele insistiu mais duas vezes, e continuei dizendo não. Na terceira, ele nem perguntou. Foi muito rápido", contou.

Depois que conseguiu se desvencilhar e sair correndo, aos prantos, Ana ainda diz que teve que lidar por muitos anos com a dúvida sobre a gravidade da violência que havia sofrido. Assim como agiu com Cat de Almeida, Beck, segundo ela, a procurou depois, querendo reencontrá-la.

Várias mulheres ouvidas pela reportagem relataram ter se sentido coagidas a aceitar as agressões de Beck por medo de que a violência se tornasse ainda maior. Os casos de "selvageria" se repetem nas descrições.

Priscila relata que teria sido atacada por Beck em um banheiro público em 2005. Ela conta que estava com amigos em comum em um bar do Rio de Janeiro quando começou a passar mal. No momento em que correu para o banheiro, Beck teria ido atrás dela. Priscila desconfia da possibilidade de que ele tenha colocado algo em sua bebida.

"[Ele] Tentou me agarrar, mordeu minhas costas e abriu a calça. Eu o empurrei e consegui sair. Eu estava muito assustada e a única coisa que consegui pensar foi pegar um táxi e chegar bem em casa", disse.

A cineasta Elza diz que saiu com Beck cinco vezes há 10 anos. Ela conta que quando reclamava das mordidas que a deixavam machucada, por exemplo, ele perguntava se "doer não é bom" e ela respondia que não, mas sem ouvir uma resposta em retorno. "Tinha uma coisa fria da parte dele, uma forma de manipular a situação pra que só ele sentisse prazer".

Elza disse que chegou a ser alertada sobre isso quando contou que estava saindo com Beck para a artista visual Ana Hupe, com quem o "The Intercept" falou. Hupe diz que sabia que ele costumava "machucar as mulheres, principalmente mordendo" e alertou a amiga. "Quando falei isso, ela reconheceu que realmente havia algo de violento nele", disse.

Algumas dessas mulheres relataram que não participam mais de festivais em que ele atua como curador, como Denise Fait. Thais Prado diz que já perdeu muitas oportunidades por não aceitar o assédio de produtores ou diretores. "É muito ruim esse jogo de interesse porque eu só queria trabalhar, mas fico sempre me perguntando se vou ter que flertar".

Depois que a primeira denúncia contra Beck veio à tona, em maio, o produtor de cinema André Mielnik anunciou, pelo Facebook, o fim da sociedade que tinha com ele na produtora If You Hold a Stone. Os relatos das mulheres "bateram fundo em mim e em toda comunidade cinematográfica", escreveu Mielnik citando as postagens de Cat de Almeida e das cineastas Flora Dias e Deborah Viegas.

O outro lado

Em sua página no Facebook, Gustavo Beck escreve um longo texto se defendendo. Ele começa afirmando que apoia incondicionalmente todas as mulheres que são ou foram vítimas reais de abuso físico ou emocional. "Eu não imagino a dor que deve ser passar por uma situação destas e a dificuldade de as relatar". E fala que é alvo de falsas acusações de abuso.

Ele diz que nunca teve nenhuma relação com Cat de Almeida. Confirma que teve um relacionamento afetivo com Deborah Viegas por cerca de um ano e escreve que ela deu início a uma agressiva campanha de difamação contra ele e sugere que ela estaria preparando um dossiê onde o atacaria, no âmbito pessoal e profissional.

"Nunca na minha vida cometi um ato criminoso de abuso sexual, ou qualquer outro tipo de abuso físico, contra outro ser humano. Portanto, nego incondicionalmente a acusação formulada e propagada por Deborah Viegas, a partir do post original de Cat de Almeida."

"Em poucos dias, através de amigas e amigos em comum, recebi print screens de conversas de Messenger e WhatsApp, que evidenciam pessoas próximas a Deborah Viegas atuando de maneira coerciva para que outras pessoas tomassem posição contra mim, supostamente em prol de uma causa, sem mesmo saber qual a concretude e veracidade das acusações."

Gustavo Beck termina o post lembrando que acusar falsamente alguém de praticar crime constitui crime de calúnia e denunciação caluniosa.

"Por esta razão, tomarei todas as medidas judiciais criminais e cíveis cabíveis contra todas as pessoas que me acusarem falsamente de ter praticado crime."