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Excesso de telas e rotina bagunçada: mães compartilham culpas da quarentena

Marina é mãe de Gabriel, Joaquim e Benjamin; na quarentena, videogame é entretenimento quase diário - Arquivo pessoal
Marina é mãe de Gabriel, Joaquim e Benjamin; na quarentena, videogame é entretenimento quase diário Imagem: Arquivo pessoal

Nathália Geraldo

De Universa

31/08/2020 04h00

As mãozinhas seguram o celular e os olhos atentos se preenchem pelo colorido da tela. No isolamento social, qual adulto com crianças em casa não viu essa cena e, por um segundo, não se perguntou se a liberação dos desenhos e vídeos no Youtube para os filhos não tinha ido longe demais?

Não é só você. Mulheres já costumam sentir culpa - por vivermos em uma sociedade machista e que reitera a desigualdade de gênero na criação dos filhos - por alguns "deslizes" no desenvolvimento das crianças. Na quarentena, a angústia de se sentir uma "péssima mãe" se multiplica. Será que estou estragando os pequenos? E, se sim, isso será reversível quando finalmente sairmos de casa?

Universa entrevistou mães que estão lidando diariamente com essas emoções, mudanças de hábito e questões práticas, como trabalhar e cuidar dos filhos concomitantemente, e ouviu a psicopedagoga Larissa Fonseca sobre o tema, para entender como colocar esse momento das crianças na pandemia em uma perspectiva mais generosa.

Celular, comida, sono: o que mudou na rotina das crianças

Luciana e filhas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rotina de Luciana, Aísha e Naíma mudou completamente na pandemia, diz a servidora pública
Imagem: Arquivo pessoal

Nesta quarentena, a servidora pública Luciana Bento, que está trabalhando em casa desde o início da pandemia e faz mestrado, lida agora com a modalidade "celular quase o dia inteiro" das filhas, Aísha, 8 anos, e Naíma, de 6.

"Elas não tinham celulares. Iam para escola em tempo integral, tinham horário para dormir. Só que, nesse caos, minha vida e a delas ficaram de cabeça para baixo. Chegou nessa questão do excesso de telas, porque elas não querem fazer mais nada além de ficar jogando e assistir TV", comenta.

"Elas ficam irritadas para assistir a aulas e, como moramos em apartamento, falta espaço para brincarem. Parece que, por estarem em casa, tem clima de férias. E não têm compromissos, só querem deixar o tempo passar".

Para a psicopedagoga Larissa Fonseca, o estresse que a pandemia tem gerado para as mulheres tem origem na culpa materna - apesar de, para algumas, o momento representar um incentivo à superação desse sentimento.

"As mães já carregam uma culpa de estar acertando ou não na criação dos filhos, exagerando ou deixando aquém; ao fazerem coisas que já é sabido que não são ideais, essa sensação aumenta", analisa Fonseca.

"Só que na pandemia foi preciso ceder a questões, como deixar mais nas telas, alimentação mais desregrada, por um aspecto de praticidade. São ajustes para a própria sobrevivência."

Sou uma péssima mãe?

Na casa de Luciana, mais uma mudança: o pai das meninas, que não morava com elas, está passando a quarentena no apartamento. Nem por isso a angústia materna vai embora.

"Agora, conseguimos dividir mais a atenção delas, superamos a questão da convivência para focar no que precisa. Mas, penso o tempo inteiro que sou uma péssima mãe, que estou deixando minhas filhas soltas. Estamos comendo mais e mais porcaria, coisa congelada, por exemplo", explica a servidora pública.

Videogame, o infiltrado no clã

Marina, Bruno e filhos  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marina e Bruno estabeleceram novas regras para trazer mais harmonia na convivência familiar durante o isolamento
Imagem: Arquivo pessoal

A rotina da doula Marina Giuliani Rodrigues Massa, que mora em Boston, nos Estados Unidos, com o marido Bruno Massa e os filhos Gabriel, 8 anos, Joaquim, de 4 anos e Benjamin, de 1, também está completamente diferente por conta de um intruso no clã durante a quarentena: o videogame. De restrito aos finais de semana, o jogo passou a ser liberado quase todos os dias.

Gabriel, que antes assistia às aulas on-line, agora está de férias. E ao lado dos menores, torna os momentos de "tranquilidade e calmaria" cada vez mais raros, diz a mãe dos pequenos.

"Eles estão sempre muito agitados, correndo, gritando, pulando e muitas vezes brigando. Acabo usando a tela em momentos que eles estão agitados demais e eu cansada demais", explica. "Sobre o videogame, aliás, colocamos algumas regras porque eles estão ficando superirritados quando desligamos o aparelho."

Uma das saídas, avalia Massa, que tem trabalhado em casa e divide detalhes da rotina da família no Instagram @mompwr, é compartilhar as frustrações e o cansaço da rotina com outras mães. "Acho que conseguimos nos ajudar a encontrar um equilíbrio. Cada uma colocando seu ponto de vista, a forma como lidam em suas casas, ajuda bastante."

"Mãe, já faz 29 semanas"

Mãe de Ryan, 12 anos, e Catarina, de 2, Leticia de Castro Lima conta para Universa que tem vivido um "segundo isolamento" com as crianças e o marido, Lucas. O quarteto mora em Monte Sião (MG).

É que desde novembro a mais nova tem passado por um tratamento oncológico — ela foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda — o que já pedia cuidados extras, como usar máscaras e manter uma rotina de visitas ao hospital.

A quarentena intensificou o desafio emocional de estar em casa o tempo inteiro com os filhos, conta Lima, que mora em Monte Sião (MG).

Leticia, Catarina e Ryan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Entre livros e tablet, família tenta manter rotina acolhedora para os pequenos Ryan e Catarina, que passa por um tratamento oncológico
Imagem: Arquivo pessoal

"A mãe que acompanha um tratamento oncológico já vive isso de perceber a linha tênue entre a permissividade e o ser durona. No tratamento, Catarina usa corticoide e, por isso, o humor dela oscila muito. Outra coisa: por algum efeito da quimioterapia, ela não suporta ficar de roupa. Então, eu e o pai a aquecemos o máximo possível com cobertas".

Para Ryan, que segundo ela "entrou no isolamento criança e já virou um adolescente", a pandemia trouxe aflição. "Ele me disse: 'Mãe, já faz 29 semanas que eu não saio de casa e não vejo meus amigos'. Isso me chocou, porque não sabia que ele estava contando. Então, abri uma exceção, e fui com ele buscar nosso gatinho, que tinha sido envenenado, no veterinário". O episódio, aliás, rendeu mais um motivo de tristeza para ele. "Ele me perguntou se era errado sentir ódio".

Para Leticia, que também tem oferecido telas para eles se entreterem dentro de casa, a preocupação maior está em respeitar os sentimentos dos filhos e aprender a lidar com as exceções da rotina que, no final das contas, podem fazer bem a eles.

"Ryan sempre ia dormir às 22 horas. Mas, quando não tem aula, ele pede para varar a noite vendo filmes comigo e fazemos. Também compomos músicas juntos, algo que só acontecia aos finais de semana. Tudo vira um evento".

Sentir-se mal porque o filho está mal

"O desenvolvimento emocional faz parte das tarefas dos pais [ou adultos que cuidam dos menores]. Então, por mais que seja difícil, esse momento é uma oportunidade rica para trabalhar com eles questões de falta de controle, o lidar com a tristeza, com as limitações que a vida nos impõe", avalia Larissa Fonseca.

Ainda assim, a ideia de que as crianças estão sendo "estragadas" com mudanças tão drásticas na rotina e a angústia frente às emoções negativas vivenciadas por elas, como tristeza e revolta, são comuns entre as mães.

Conversar sobre os efeitos emocionais da pandemia, diz a psicopedagoga, é o trunfo para que a carência, o tédio e qualquer outro sentimento vivido pelas crianças não fique só na cabeça delas.

"Por vezes, para os menores, não é tão simples de entender que não pode encontrar as pessoas ou, quando encontra, que não pode dar beijo, abraçar. É importante falar com eles sobre isso e também dizer o que você está sentindo. A gente sempre quer que os filhos estejam eufóricos, saudáveis, felizes, mas, se eles estão vivendo a tristeza, a saudade, é preciso dizer que o momento é em prol de um grupo".

Para os filhos maiores, que podem estar passando por dificuldades em relação à aprendizagem em aulas virtuais, o diálogo deve estar aberto com o colégio. "Se for necessário, ver com a escola um apoio individual. Ou, se a família tem recurso, buscar profissionais de educação que possam ajudar com ferramentas, virtuais, inclusive."

O "estrago", diz a psicopedagoga, na maioria dos casos não é irreversível. "A criança sempre é ajustável. Mas vale a pena explicar que aquilo está sendo liberado 'hoje', 'durante esse período', 'nessa semana'. Dizer, por exemplo, que 'a partir de agora, vai ser assim'", pontua. "Até porque elas precisam de um tempo e de consistência para assimilar novas regras, inclusive quando elas mudarem".

Estratégias para a saúde emocional das crianças

Cada criança e cada família estruturam os hábitos de isolamento social de forma diferente. Buscar apoio mais estratégico e/ou profissional para as mudanças, como nutricionista, psicólogo, professores particulares neste momento, deve ser uma decisão bem pensada pelos adultos.

"Se for algo que cause mais estresse à criança, não compensa", comenta Fonseca. "Aí, vale fazer algumas tentativas de reajustar cardápio, sugerir brincadeiras de movimento, que sejam até pela TV, mas que ela não fique passiva. Pedir para ajudar para as tarefas de casa também é enriquecedor. Além disso, incrementar os momentos brincantes da criança para que ela libere energia física."