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Do rosto triste ao sorriso: como a menina de 10 anos mudou em 3 dias

Presentes, balões e mensagens de anônimos foram entregues no hospital onde menina de 10 anos ficou internada - Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo
Presentes, balões e mensagens de anônimos foram entregues no hospital onde menina de 10 anos ficou internada Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão Conteúdo

Aliny Gama

Colaboração para Universa, no Recife

20/08/2020 10h10

"Ela chegou muito séria, retraída, rosto de tristeza com tudo que estava passando. Ela pouco se expressava, ficava com o olhar perdido. Depois do procedimento, de ter se recuperado da sedação, (ela) se mostrou outra menina, com alívio, olhos alegres toda vez que recebia presentes". A afirmação da enfermeira Paula Viana resume como foram os três dias da menina de 10 anos, que engravidou após ser estuprada e realizou um aborto autorizado pela Justiça, em sua permanência em um hospital no Recife.

Integrante da coordenação colegiada do grupo Curumim, Paula acompanhou de perto a garota nos três dias em que ela ficou na capital de Pernambuco. Neste período, houve pressão de grupos extremistas e religiosos contrários ao aborto, mas também uma rede de apoio em solidariedade à menina.

A "força-tarefa" do afeto foi criada de forma involuntária por Paula, uma outra integrante do grupo Curumim e o médico Olímpio Barbosa de Morais Filho, diretor do Cisam (Centro Integrado Amaury de Medeiros), da Universidade de Pernambuco, local onde foi realizado o procedimento.

A iniciativa foi mobilizada às pressas no domingo, quando já se temia por protestos em frente ao hospital. Natural do Espírito Santo, a garota chegou à capital pernambucana após o Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes), em Vitória, declarar que não realizaria o aborto alegando que a menina não se encaixava nos critérios do Ministério da Saúde. Ainda no domingo, ela foi submetido ao procedimento de aborto no Cisam e teve alta médica na madrugada de ontem.

Durante este período, a garota foi acompanhada pela avó e foi cercada de cuidados pelo hospital. Além do trabalho do trio, o estabelecimento manteve sigilo sobre o dia de alta da menina e montou um esquema de segurança para protegê-la. A medida teve como objetivo poupar a vítima de estupro de ser hostilizada nos protestos os quais integrantes chamaram o médico de assassino e tentaram entrar à força no hospital.

Fizemos uma força tarefa de afeto para diminuir o sofrimento dela, para fazer o máximo para diminuir a dor dela. Ela estava emocionalmente muito machucada. Ela oscilou, entre um presente e outro, o olhar perdido, acho que aprendeu a sofrer calada porque foi muito ameaçada
Paula Viana, integrante do grupo Curumim

A enfermeira saiu do isolamento social durante a pandemia do novo coronavírus para ir buscar a menina no Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife.

Presente para menina - Carlos Ezequiel Vannoni/Agência Pixel Press/Estadão - Carlos Ezequiel Vannoni/Agência Pixel Press/Estadão
Enfermeiras recebem presente deixado para a menina de 10 anos internada em hospital
Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Agência Pixel Press/Estadão

Em entrevista a Universa, Paula conta que não tinha pensado na situação que se formaria quando grupos contra aborto se articularam para tentar impedir a menina de realizar a interrupção da gravidez determinada por ordem da Justiça.

"Tudo aconteceu muito rápido. Entre a sinalização que ela vinha para Pernambuco e a chegada foi apenas um dia. Ia um motorista buscá-la no aeroporto, mas, de última hora, decidi ir junto com outra integrante do Curumim e, assim, pudemos agir junto com doutor Olímpio, que ficou na porta do Cisam sendo rechaçado pelo grupo, sendo chamado de assassino, até entrarmos sem quem ninguém notasse", relembra.

Paula foi uma das pessoas que assistiu junto com o médico à outra criança grávida vítima de estupro. O caso ocorreu em 2009 no município de Alagoinhas (PE), na região Agreste, e a vítima engravidou de gêmeos durante estupros cometidos pelo próprio pai. A igreja Católica se posicionou contra e até excomungou o médico. Depois do procedimento, a criança mudou-se de cidade duas vezes para prosseguir a vida sem novos transtornos.

Além dos protestos na porta do Cisam, o presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), arcebispo dom Walmor, classificou o caso como "crime hediondo" e o arcebispo da arquidiocese de Olinda e Recife, dom Antonio Fernando Saburido, afirmou que "Recife está com fama de capital do aborto". Em contrapartida, grupos de mulheres e outros moradores da cidade levaram dezenas de presentes para a menina como forma de apoio e carinho para minimizar o sofrimento dela.

A criança ganhou presentes variados, como flores, chocolates, roupas e calçados, e muitas homenagens na porta do Cisam. Balões e cartazes com mensagens de apoio para ela e para a equipe foram amarrados às grades ao lado da porta de entrada do hospital. Ela ganhou duas malas para levar todos os presentes.

Paula recorda que, após o procedimento, a menina mudou o semblante de tristeza e começou a falar sobre os brinquedos e planos para o retorno para casa.

Ela chegou muito séria, retraída, rosto de tristeza com tudo que estava passando. Ela pouco se expressava, ficava com o olhar perdido. Depois do procedimento, de ter se recuperado da sedação, se mostrou outra menina, com alívio, olhos alegres toda vez que recebia presentes
Paula Viana

De acordo com a enfermeira, a própria menina arrumou na cama os presentes que foi ganhando no tempo que ficou no Cisam. "Quando voltei ao Cisam na segunda-feira, após o procedimento, ela foi mostrando todos os presentes, um por um. Ali foi o mínimo que pudemos fazer diante dessa exposição que ela sofreu", explica a enfermeira.

Uma nova identidade

Após deixar o Recife, a garota poderá ter uma nova identidade e morar em outro local para continuar a vida. O governo do Espírito Santo está pronto para providenciar o documento e um imóvel (com aluguel pago). A confirmação foi dada a Universa por fontes do Palácio Anchieta, sede do governo, do Ministério Público Estadual, e da Secretaria de Estado da Saúde.

Dois programas que compõem o Sistema Estadual de Proteção a Pessoas Ameaçadas serão oferecidos à menina: o Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (PROVITA) e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). A família também poderá ser incluída.

Suspeito de estupro está preso

O tio suspeito de estuprar a garota durante quatro anos e engravidá-la está preso desde a manhã de segunda-feira. A sua prisão foi realizada com o auxílio de um investigador chamado Cláudio, que negociou a entrega do suspeito. O tio estava em Betim (MG), deixou São Mateus (ES) de táxi clandestino dois dias antes de ser preso e tinha a escolta de pessoas próximas na cidade mineira.

O suspeito solicitou que Cláudio fosse o responsável por acompanhar a sua entrega e que o ato ocorresse em um local definido por ele. "O que sabemos é que o local era bastante ermo. Os policiais tiveram que mandar foto do carro que iriam estar, uma viatura descaracterizada, para que o tio não desconfiasse que seriam outras pessoas pra matar ele. Ele foi detido no meio da rua. Estava ciente do motivo da prisão, não resistiu em nenhum momento", contou uma pessoa ligada à investigação que pediu para não ser identificada.