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O que diz a lei sobre o caso da menina grávida? Juíza responde dúvidas

A juíza Tatiane Moreira Lima, de São Paulo - Arquivo pessoal/Divulgação
A juíza Tatiane Moreira Lima, de São Paulo Imagem: Arquivo pessoal/Divulgação

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

17/08/2020 21h06

Um aborto permitido por lei pode depender de autorização judicial? Um médico pode se recusar a fazer um aborto previsto em lei? A criança que sofreu o abuso tem a palavra final sobre o aborto?

São muitas as perguntas sobre o caso da criança de dez anos que foi vítima de abuso sexual de um tio e engravidou. E que teve que ir a outro estado para conseguir interromper a gravidez.

Para esclarecer as principais questões sobre o caso, Universa conversou com a juíza Tatiane Moreira Lima, atualmente no comando da Vara de Violência Doméstica contra a Mulher Leste 2 da cidade de São Paulo.

"A criança tem que ser ouvida, a vontade dela tem ser levada em conta, e, embora incapaz, ela tem o direito de opinar porque é a vida dela que está em jogo", diz a juíza.

Em uma década de magistratura, ela conheceu de perto a violência contra a mulher ao se tornar, ela própria, vítima de um homem que havia invadido as dependências do Fórum do Butantã, em São Paulo, onde atuava à época. Na maior parte da carreira, entretanto, Tatiane atuou em casos em que não apenas mulheres sofreram com a violência de parceiros, mas em que crianças e adolescentes foram abusadas, muitas vezes, dentro de casa, e engravidaram do agressor.

A Universa, a juíza paulista é taxativa em dizer que o Estado falhou ao não garantir o aborto da criança tão logo o desejo pela interrupção da gravidez foi manifestado.

"Houve uma falha do Estado, enquanto ente, para conseguir garantir o direito dessa menina. O Estado não garantiu que ela exercesse o direito de interrupção da gravidez. Ela foi estuprada, foi vítima de um crime", disse.

Veja abaixo as explicações da magistrada para algumas das principais dúvidas sobre o caso.

Um aborto permitido por lei pode depender de autorização judicial? Existe uma idade gestacional máxima para que o aborto para vítimas de estupro seja permitido no Brasil?

Temos uma divergência entre o que se considera aborto nos termos médicos, e aborto nos termos jurídicos. Aborto, para médicos, é o realizado até 22 semanas gestacionais ou até 500 gramas de peso fetal —tudo o que estiver fora disso não é considerado, portanto, aborto. Para os meios legais, o aborto é permitido em casos de estupro, anencefalia ou quando houver risco à vida da gestante.

E a lei não faz restrição à idade gestacional ou ao peso fetal, portanto, sempre que acontecer alguma dessas três situações —estupro, anencefalia ou risco de vida—, a lei autoriza o aborto. Na verdade, a lei não impede o aborto depois das 22 semanas ou acima dos 500 g do feto: a classe médica é que impõe essas restrições. Por isso, a situação acabou judicializada.

O pedido de aborto não precisa ser judicializado: basta que a mulher ou a criança alegue que houve estupro ou risco de vida, para que a entidade médica seja obrigada a fazer a interrupção da gravidez.

Um médico pode se recusar a fazer um aborto permitido por lei e com determinação da justiça? Em que casos? O que deve ser feito, caso haja essa recusa?

O médico pode se recusar a fazer o aborto alegando escusa da lei, por questões de consciência: pode dizer que não concorda moralmente com essa escolha ou por seus princípios religiosos. Mas o hospital, como órgão responsável, tem que indicar um profissional para fazê-lo.

Nesse caso, a menina procurou o hospital. O médico, em si, podia se recusar a fazer o procedimento, mas o hospital teria que dispor de um profissional apto a agir, para que essa vítima não tivesse de fazer uma via crucis e ir de hospital em hospital até achar um médico disposto [o hospital negou viés religioso para a recusa em atender a criança].

Um hospital pode se negar a fazer um aborto permitido por lei? E, no caso de recusa, a instituição pode sofrer alguma consequência por isso?

O hospital não pode se negar a oferecer atendimento. Na verdade, ele pode, sim, sofrer alguma consequência, uma vez que o direito da menina de interromper a gravidez foi negado.

A polícia e a Justiça do Espírito Santo falharam no caso da menina de dez anos?

Acredito que o que houve foi uma falha do Estado, enquanto ente, para conseguir garantir o direito dessa menina. O Estado não garantiu que ela exercesse o direito de interrupção da gravidez. Ela foi estuprada, foi vítima de um crime. Depois, ela engravidou, tinha direito à interrupção, e isso ainda precisou ser judicializado, o que não é o correto, o normal, pois não havia a necessidade. Fora o percurso imenso para conseguir migrar de estado para conseguir obter um direito.

Que consequências físicas, sociais e mentais uma gravidez aos dez anos pode trazer para uma criança?

Traumas psicológicos, graves consequências físicas para o corpo dela, que ainda não está totalmente preparado para ter um bebê. No caso do aborto, ela também teria que passar por um processo, um protocolo específico para crianças, diferente de um aborto em uma mulher adulta. Sob o aspecto físico, o corpo dessa menina não está preparado ainda para ser mãe. Ela tem o direito de ser criança, de viver, brincar, não está preparada para ser mãe.

Já as consequências psicológicas podem ser ainda maiores e perdurarem inclusive até a vida adulta. Em muitos casos, mulheres estupradas não conseguem mais se relacionar com pessoas do sexo masculino, posteriormente, porque simplesmente não conseguem mais confiar em ninguém.

Fora isso, nesse caso específico, o mais triste ainda é que os dados pessoais dessa criança foram divulgados, o que, socialmente, implica em ela não ter mais o direito ao esquecimento. Porque o nome dela vai estar associado sempre a esse caso, será sempre aquela menina de dez anos que precisou ir para outro estado abortar. Isso é muito grave e pode ter consequências psicológicas muito graves na vida dela.

Feito o aborto legal, qual é o protocolo de acompanhamento para crianças vítimas de violência sexual que engravidam e conseguem realizar a interrupção da gravidez?

Feito o aborto, há um caminho a ser seguido: isso vai gerar um inquérito policial, que, nesse caso, já existe. Esse agressor está indiciado. Em âmbito paralelo, essa criança será acompanhada pela Vara da Infância e Juventude, com acompanhamento psicológico e social, para verificar a situação dela, e para encaminhá-la para tratamento psicológico, se houver necessidade, por um tempo, até que tudo se normalize.

Como o sistema de garantias de direitos da infância deveria ter feito o acolhimento da menina vítima de abuso sexual?

O acolhimento, pelo sistema de garantias e direitos da criança e do adolescente, deveria ser imediato. Essa criança deveria ter sido ouvida e se deveria ter acreditado em sua palavra. No momento em que ela conta o que aconteceu, independentemente da idade gestacional, do peso fetal, ela não deveria ter que viajar a outro estado, muito menos ter seus dados violados, sua identidade revelada. E, jamais, ela ou a família deveriam ter sido pressionadas porque, ao que tudo indica até aqui, houve pressão sobre os avós dela para que ela não abortasse. Ela e a família não deveriam ter passado por isso. Vários direitos dessa criança, portanto, foram violados.

Que esse seja um caso emblemático para que as pessoas comecem a olhar para os direitos da criança e do adolescente como algo a não ser violado. Que usem esse caso para criar um protocolo mais efetivo não apenas no atendimento, mas no acolhimento, porque, quando essas vítimas engravidam, muitas vezes revelam esses abusos muito tarde. Não é incomum esse tipo de aborto ser feito, mas precisa ser feito imediatamente depois que a criança revela isso, independentemente de qualquer outro questionamento, se for a vontade da criança e do responsável legal.

A criança tem que ser ouvida, a vontade dela tem ser levada em conta, e, embora incapaz, ela tem o direito de opinar porque é a vida dela que está em jogo.