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Luiza Erundina: "Por preconceito, recebi carta com fezes e ameaça de bomba"

Retrato de Luiza Erundina em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, na região central de São Paulo  - Eduardo Anizelli/Folhapress
Retrato de Luiza Erundina em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, na região central de São Paulo Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

Luiza Souto

De Universa

10/08/2020 04h00

Eleita primeira mulher prefeita de São Paulo, em 1988, a hoje deputada federal pelo PSOL Luiza Erundina se dava por satisfeita com seu sexto mandato na Câmara. Aos 85 anos, não almejava mais participar de campanha política. Mas, numa conversa de 1h30 ao telefone com Universa, ela explica que, para que o amigo e líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) Guilherme Boulos saísse candidato à prefeitura da maior metrópole do país, aceitou a condição de ser sua vice.

"Eu falei que não, para ele pegar uma mulher, de repente, mais jovem. Até que ele insistiu e não tinha mais o que fazer. Eu achava que devia contribuir como alguém que conhece a cidade e, assim, decidi", ela conta.

Paraibana de Uiraúna, mas apaixonada pelo Rio de Janeiro —"Adoro cariocas. São alegres e festivos", diz após ouvir o sotaque carioca no outro lado da linha—, seu conhecimento não se concentra apenas na experiência na administração de São Paulo. Ela costuma dizer que só faltava ser negra para completar a cartela de preconceitos pelos quais já passou. Sobrevivente da seca nordestina, perseguida pela ditadura e com histórico de ameaças de morte, diz estar gabaritada para o que vier.

Em 1971, Erundina deixou o Nordeste de ônibus rumo a São Paulo, perseguida por agentes da ditadura, enquanto militava em movimentos sociais. Já na capital, ajudou a fundar o PT, e foi eleita vereadora, em 1982. Seis anos depois desbancou poderosos da política na disputa pela prefeitura de São Paulo, como o ex-prefeito Paulo Maluf (PDS), o candidato do então governador Orestes Quércia, João Oswaldo Leiva (PMDB), e o ex-governador José Serra (PSDB).

"[Enquanto prefeita] Recebia em casa cartas com palavras ofensivas e até com fezes. Muito pelo fato de ser nordestina. Tinha pena. Como a pessoa se dava ao trabalho de ir ao banheiro e fazer isso? A elite paulistana não se conformou por eu derrotar Maluf, Serra e Quércia, e ameaçavam colocar bomba na minha sala.

Em um dado momento, falei para os policiais que faziam a minha escolta deixarem a bomba estourar.

Não me casei porque não quis

Luiza aponta que a sua primeira ruptura com o machismo aconteceu ainda na adolescência, no fim da década de 1940, quando as propagandas publicitárias de aspiradores de pó e outros eletrodomésticos determinavam que o papel da mulher era cuidar do marido e dos filhos. Sétima de dez filhos de um agricultor e uma vendedora de bolos, decidiu que só conseguiria estudar e sair da situação de miséria e seca se não se casasse.

"O modelo das mulheres da minha geração era casar cedo e, assim, reproduziam condições de pobreza, dominação e exploração. Escolhi não me casar e ter aquela filharada. E não me arrependo. Isso me dá muita consciência do meu papel como mulher e da minha relação com as mulheres. Decidi que a política seria a coisa mais importante da minha vida. E é mesmo."

Mas a escolha por ser solteira, no entanto, não a distanciou do machismo e da homofobia. Sua opção fez com que as pessoas se achassem no direito de opinar sobre a sua sexualidade. Em 1996, por exemplo, uma reportagem da Folha de S.Paulo informava que o deputado Erasmo Dias, então líder do PPB na Assembleia Legislativa, distribuiu um panfleto sob o título "A canção da Erundina", em que se lia que a petista era "sapatão". Na época, ela era candidata à prefeitura de São Paulo pelo PT:

"Muitas vezes falaram isso [sobre ser lésbica]. Se eu fosse, é evidente que é algo pessoal. Naqueles tempos, era um tema mais rejeitado do que hoje. Mas os ataques que sofri a vida inteira não me atingiram. A vida toda me desafiou".

A deputada Luiza Erundina é cercada e arrastada por policiais militares durante ação de reintegração de posse de terreno no Jardim Aurora, na região de Guaianazes, zona leste de SP - CESAR DINIZ/ESTADÃO CONTEÚDO/01/10/1987 - CESAR DINIZ/ESTADÃO CONTEÚDO/01/10/1987
A deputada Luiza Erundina é cercada e arrastada por policiais militares durante ação de reintegração de posse de terreno no Jardim Aurora, na região de Guaianazes, zona leste de SP
Imagem: CESAR DINIZ/ESTADÃO CONTEÚDO/01/10/1987

"A seca nos ensina a ser sós"

"Você leu 'Vidas Secas', do Graciliano [Ramos]? Ele retratou ali muito bem a seca no Nordeste." Assim Luiza sintetiza a história da sua família de dez irmãos, que foi se afastando ao longo dos anos até quase ninguém mais —entre os que estão vivos— se comunicar. E justifica assim também de onde vem o costume de viver só.

Antes de chegar a São Paulo, onde moravam alguns parentes, ela foi migrando de cidade em cidade da Paraíba, atrás de comida e estudo. Fez duas vezes o último ano do antigo primário porque onde vivia não havia o chamado ginasial. "Pedi para ficar na escola até que a chuva viesse e a gente pudesse se mudar", ela diz. "Porque a cada seca meu pai levava a gente para algum lugar para ter fonte de renda".

Morou com uma tia costureira em Patos, a 166 quilômetros de sua cidade natal, e depois mais longe ainda, em Campina Grande, a 341 quilômetros de onde nasceu, para concluir a escola. Foi nesse último município que, anos mais tarde, tornou-se uma das fundadoras de uma faculdade de serviço social e nela se formou, após os 30 anos.

"Sempre vivi só. A seca vai desagregando famílias pobres porque elas vão se espalhando. Ficar sozinha é uma condição de vida", diz ela, amante de um chopinho "com boa companhia".

Erundina diz que não foi afetada psicologicamente com a quarentena. Hoje, morando num apartamento de dois quartos, em Mirandópolis, na zona sul, tem como vizinha uma das irmãs e o cunhado. Mas a dupla está com problemas de saúde, e eles não se veem desde o início do isolamento social decretado para conter o avanço do coronavírus.

Dispensou ainda a diarista e fez de escritório o quarto onde um sobrinho Rafael, de 38 anos, com Síndrome de Down, passa temporadas. Ele ficou órfão de mãe aos cinco anos, e seu pai, o irmão de quem Luiza era mais próxima, morreu há cerca de dez anos. Hoje, ele mora em Cuiabá com um irmão.

Sem poder fazer uma limpeza mais pesada na casa, a deputada recebe apenas uma faxineira de 15 em 15 dias. Comida, Luiza pede fora.

"Sei fazer arroz, café, e fritar um ovo. Então peço pratinho aqui embaixo mesmo".

Para exercitar a mente, lê muito e navega pela internet.

"Quando chegar a hora, tudo bem"

Por causa da pandemia, a campanha política para as eleições municipais deste ano se dará mais no campo virtual, sem o famoso corpo a corpo, a partir de 26 de setembro.

Antes de garantir que está adaptada às redes sociais, Luiza lembra que participou da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara e estuda o tema há mais de 20 anos.

"Eu me viro e participo das sessões virtuais [da Câmara]", diz.

Ligada a temas atuais e totalmente conectada, Luiza diz que a velhice não é uma tragédia. Nem fica pensando na morte: ela a entende como um estágio da vida.

"Vejo com tanta naturalidade. Assim como a velhice, que não é nenhuma doença. Quando chegar a hora, tudo bem. Chegou. Só não quero sofrer. Não me deixem muito tempo esperando", brinca.

 Luiza Erundina anda de skate no Hospital Municipal de Campo Limpo, na zona sul de São Paulo - Epitácio Pessoa/Estadão Conteúdo/ 14/09/1990 - Epitácio Pessoa/Estadão Conteúdo/ 14/09/1990
Luiza Erundina anda de skate no Hospital Municipal de Campo Limpo, na zona sul de São Paulo
Imagem: Epitácio Pessoa/Estadão Conteúdo/ 14/09/1990

Mulheres na política

Era 1989, quando a Revista Brasileira de História, uma das mais respeitadas publicações da área no país, publicou pela primeira vez uma edição dedicada à mulher que debateu, entre outros temas, a exclusão do exercício da cidadania das mulheres. E foi naquele mesmo ano que Luiza Erundina, então no PT, tornou-se a primeira prefeita mulher de São Paulo, cargo que já havia sido ocupado por 44 homens desde 1835.

De lá pra cá, a cidade teria apenas mais uma prefeita, Marta Suplicy, que se elegeu em 2001 pelo mesmo partido.

Na avaliação de Luiza, é o machismo dos próprios partidos que faz o Brasil ocupar a 152ª posição, de um total de 192 países, no ranking de representatividade feminina na Câmara dos Deputados (o país tem apenas 15% das cadeiras da Casa ocupadas por mulheres). Poucos deles têm mulheres na presidência, ela aponta.

Outro fator é a questão cultural, ela acrescenta. Na sua avaliação, ainda hoje mulheres não são formadas nem estimuladas a participar da política.

"O menino cresce exercendo liderança na relação com outros meninos. O foco da vida dele não é o privado nem o doméstico. Enquanto as meninas começam, desde cedo, a dividir com a mãe o trabalho doméstico", exemplifica.

"E, se o homem puder impedir que a mulher se eleja a algum cargo, ele o fará. Porque vaga ocupada pelas mulheres significa menos homens no poder. Sempre me indagavam quem era o homem que governava por mim."

Medidas para evitar a violência contra a mulher

Para a deputada, violência de gênero e toda forma de preconceito se combatem mudando o currículo escolar e levando esses temas às salas de aula desde os primeiros anos de ensino. Ela afirma que uma prefeitura liderada por Boulos iria orientar professores da rede municipal a debater essas questões.

Diz ainda que as diretrizes apontadas na Lei Maria da Penha, como dispor de abrigos para as mulheres que precisam se afastar do agressor, além de novas leis para proteger esse público, só se tornarão eficazes com mais mulheres no poder.

"Falta protagonismo das mulheres na sociedade. O movimento das mulheres existe para garantir o cumprimento da legislação. Por isso, é preciso eleger vereadoras e prefeitas."

Quanto mais mulheres no espaço municipal tiverem poder, mais esse quadro de violência vai diminuindo.