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"Não deixo o pai da minha filha dar banho nela": elas relatam medo de abuso

Getty Images
Imagem: Getty Images

Luiza Souto

Universa

07/08/2020 04h00

A manicure Fernanda Ramos, 37, de Taboão da Serra (SP), diz que somente ela dá banho na sua filha, de um ano e três meses. Já a administradora de empresas Raquel* prefere estar presente quando o marido limpa a bebê do casal, de seis meses. O temor das duas é o abuso infantil. Para elas, o melhor é manter a distância entre meninas e homens para evitar que o crime ocorra.

Especialistas ouvidas por Universa alertam para um possível temor exagerado das mães, quando não há nenhum histórico de violência por parte do companheiro, que pode acabar minando a relação entre pai e filha.

O Brasil registrou 66.041 casos de violência sexual em 2018, o maior já contabilizado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano passado. Desse total, 53,8% vítimas tinham até 13 anos. Quatro meninas de até 13 anos foram estupradas por hora no país. E em 75,9% desses crimes, o criminoso é alguém próximo. Num outro levantamento mais detalhado, do Ministério da Saúde, observamos que a maioria dessas agressões ocorre em casa (68%), e têm o pai (12%), o padrasto (12%) ou outra pessoa conhecida (26%) da criança como abusador.

Esses dados, somados às notícias diárias sobre violência de gênero e abuso infantil, criaram em Fernanda o temor de deixar a filha única com alguém, inclusive com o pai da menina.

"Não considero adequado meninas se acostumarem com homens encostando em seus corpos enquanto ainda não têm maturidade para saber se aquele toque não tem malícia", ela justifica.

"Esse é o jeito que fui criada e é o jeito que crio minha filha. Não tem nada a ver com o meu relacionamento com o pai dela. Ninguém está na cabeça do outro para saber o que se passa. Tanto que a gente vê todos os dias coisas ruins acontecendo dentro das casas."

Fernanda pontua que a decisão não interferiu na divisão das tarefas domésticas. Enquanto cuidava exclusivamente da neném, o pai, com quem viveu por um ano e meio, se encarregava das tarefas do lar. Os dois estão separados há alguns meses.

"Combinamos assim"

Raquel —ela prefere não se identificar— vive um relacionamento estável há 14 anos e tem dois filhos: um menino de seis anos e uma menina de seis meses. Mas a moradora de São Paulo explica a Universa que prefere desconfiar de todos a chorar pelo leite derramado. "Meu marido é maravilhoso, um bom pai, mas só Deus sabe o que passa na cabeça e no coração dele."

Pelo temor de que aconteça algo, em comum acordo com o companheiro, é ela quem dá banho na filha, enquanto ele se dedica mais ao menino. E se o pai precisar levar a menina ao banheiro, a mãe supervisiona. Ela explica que já conversou sobre seus medos com o companheiro, e ele compreende:

"Ele nunca se sentiu ofendido com isso, porque tem a mesma cabeça que a minha. Temos esse acordo e ele concorda".

Especialistas aconselham investigar o medo

As psicólogas Marina Vasconcellos e Blenda de Oliveira concordam que, se a mulher conhece bem o parceiro, e ele nunca deu motivo para desconfianças, é preciso que ela investigue de onde vem esse sentimento. Provavelmente, as profissionais sugerem, há aí um histórico de violência.

"Essa mulher pode não ter sofrido um abuso, mas pode ter acontecido com alguém da família, uma pessoa próxima, e isso acaba refletindo na relação com esse homem e sua filha", explica Blenda, psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e psicoterapeuta de adultos, adolescentes, famílias e casais.

"Eu diria para essa mulher procurar uma terapia de casal e explicar como está essa relação. Ou fazer uma terapia individual para se abrir, para ver de onde vem esse medo", diz Marina, terapeuta familiar e de casal pela Unifesp.

Enquanto Fernanda afirma não ter traumas, Raquel reconhece que vem pensando, sim, em buscar ajuda profissional. Ela fala que aos cinco anos de idade viu o pai transando com sua babá e que, enquanto a mãe dela trabalhava, ele passava o dia buscando outras mulheres.

Além disso, um parente também tentou beijá-la à força, quando tinha oito anos. E um vizinho a levou para seu apartamento e colocou um programa que falava sobre sexo na TV, para a então menina de 12 anos assistir. Ela conseguiu sair correndo do lugar. O marido também sofreu abuso, aos três anos de idade.

"Cresci com medo de qualquer pessoa e achava que era esperta, mas não. Por isso, desconfio de todo mundo", ela explica.

Relação pode ser afetada

Buscar ajuda é importante ainda para que esse tipo de temor não afete a relação entre pai e filha. A menina, exemplifica Blenda, pode ver o pai como um homem ameaçador, não confiável e não enxergar que ele está ali para cuidar dela. Por isso, diz a psicóloga, é importante que não se generalize nem se enxergue em todo o homem um potencial agressor.

"É preciso estar atento aos sinais, como um comportamento agressivo do homem, e olhar caso a caso. Se não, vira uma histeria coletiva", alerta Blenda.

Claro que, a partir dos quatro anos, a menina já pode tomar banho sozinha, e aí não precisa nem da mãe para isso. E, quando estiver chegando na puberdade, diz Marina, nem é legal mesmo invadir sua privacidade.

"Mas, no caso da criança, não tem que sexualizar algo que não é para ser sexualizado."