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Após sofrer assédio em ônibus, jovem ganha indenização, mas perde o emprego

Jovem sofreu assédio em ônibus e ganhou indenização - Arquivo pessoal
Jovem sofreu assédio em ônibus e ganhou indenização Imagem: Arquivo pessoal

Hygino Vasconcellos

Colaboração para Universa

21/07/2020 04h00

Era para ser um dia normal na pacata Arroio do Silva, cidade com menos de 10 mil habitantes no litoral catarinense. Ana*, de 21 anos, estava indo para casa de ônibus. Sentou nos últimos bancos. Enquanto mexia no celular, percebeu de relance que um passageiro estava se masturbando por debaixo da calça de moletom a três bancos de distância dela.

O episódio, acontecido há quase dois anos, resultou num trauma para a jovem, que conquistou uma indenização da empresa de transportes, mas nunca mais conseguiu andar de ônibus.

No dia do assédio, Ana, incrédula, decidiu fazer um vídeo, já que o homem parava os movimentos quando ela virava a cabeça. "Cada vez que eu olhava para ele, ele parava. Eu pensei: 'Tem alguma coisa errada'. E comecei a filmar. Fiz várias gravações. Fiquei muito nervosa ao ver o vídeo, me levantei e fui até o motorista."

Ana questionou o condutor se havia um botão de emergência para acionar a polícia. "Ele me perguntou porque eu estava perguntando aquilo e eu expliquei a situação." O motorista parou o ônibus, repreendeu o homem e disse para ele descer —a duas quadras da casa de Ana.

Ainda dentro do coletivo, ela passou a ser julgada por outras passageiras. "Elas começaram a falar que aquilo tinha acontecido por culpa minha, por eu ter sentado nos últimos bancos. Me senti um lixo e comecei a chorar", diz Ana, que, em seguida, desceu do ônibus e acionou a polícia.

Sem coragem para andar de ônibus

A situação aconteceu em agosto de 2018. Desde então, traumatizada, Ana nunca mais entrou em um ônibus pois soube que o homem continuava a circular nos coletivos, já que nunca foi preso. "Eu nunca mais tive coragem. Para mim foi uma sensação de impotência tudo o que aconteceu. Eu acredito que ele tenha me visto descer do ônibus aquele dia. Imagina se viesse atrás de mim?"

Sem andar de ônibus, Ana teve que largar o emprego de faxineira na cidade vizinha de Araranguá. Hoje, trabalha no pequeno restaurante do pai, limpando peixes e ajudando no preparo das refeições. No ano passado, perdeu a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) por falta de carona.

Danos morais

Após o episódio, a jovem entrou com um processo contra a empresa de ônibus. A advogada Paola Alborghetti, que defende Ana, entendeu que a concessionária deixou a passageira desamparada e em lugar de risco, já que o homem desceu a poucos metros da casa dela. "Quando recebi a demanda, verifiquei que esse homem já havia feito isso reiteradamente", diz a advogada. "A violência de gênero acontece muitas vezes de forma velada. Acredito que a obrigação de cuidar da dignidade sexual das mulheres é função não só do Estado mas também da sociedade como um todo."

Na última semana, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina anunciou que a empresa de transportes foi condenada a pagar uma indenização de R$ 10 mil em danos morais para Ana.

O juiz Bruno Santos Vilela, da 1ª Vara Cível de Araranguá, observou que a concessionária deveria assegurar a integridade física e moral dos passageiros durante todo o percurso e que esse tipo de prática não é isolado.

"Vale dizer: reconhecido o fato de que mulheres reiteradamente são vítimas de assédio sexual ou de atos obscenos no interior das diversas modalidades de transporte público, cabe ao concessionário adotar um conjunto de medidas de segurança, tais como a criação de espaços restritos para mulheres, câmeras de vigilância, cartazes de advertência, comunicação direta com Polícia Militar", destacou o juiz na sentença.

Indenização não é o suficiente

Segundo a sentença, a empresa não apresentou a adoção de nenhuma política destinada a combater os atos de violência sexual contra as mulheres.

"Ao sustentar que caberia à vítima ligar e pedir a intervenção dos agentes de segurança pública, o requerido dá a entender que a violência de gênero praticada no interior do transporte público seria assunto privado, restrito ao autor e à vítima, e não uma questão pública, cuja solução exige a implementação de ações de natureza pública, com necessária participação do concessionário", assinalou o juiz.

Ana, no entanto, ainda não se sente satisfeita com a decisão, já que o homem que praticou os atos obscenos não foi punido. Na época dos fatos, foi instaurado um termo circunstanciado, o autor foi identificado, mas não foi localizado.

Procurada, a empresa Viação Cidade Ltda informou, por meio do advogado Aldryn Luciano de Souza, que prefere não se manifestar mais.

(*) O nome foi trocado a pedido da entrevistada.