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Autora de série sobre strippers: "É apenas um trabalho que exige nudez"

Cena da série "P-Valley" - Starzplay/Divulgação
Cena da série "P-Valley" Imagem: Starzplay/Divulgação

Mariane Morisawa

Colaboração para Universa

14/07/2020 04h00

A dramaturga e roteirista Katori Hall, uma das principais vozes jovens americanas, cresceu indo a clubes de striptease em Memphis, no Tennessee, onde nasceu há 39 anos, e em outras cidades dos Estados Unidos. Até a um chá de bebê num desses espaços ela foi.

"Era excitante, mas via tudo sob um olhar masculino", diz ela. Katori, porém, sempre admirou as acrobacias malucas das dançarinas. Anos mais tarde, resolveu tentar uma aula de pole dancing. Passou mal. E foi aí que decidiu que teria de saber a razão pela qual aquelas mulheres faziam esse trabalho tão duro.

O resultado das entrevistas com mais de 40 strippers foi a peça "Pussy Valley", que, ela mesma admite, não deu conta de fazer jus à vivência rica daquelas mulheres. A peça então virou a série "P-Valley", que acaba de entrar no ar na plataforma de streaming Starzplay, com um novo episódio a cada domingo —e que foi recebida com entusiasmo geral pelos críticos.

O tom é realista, de tal maneira que quase dá para sentir o cheiro dos lugares. Com passagens por três das instituições mais prestigiosas dos Estados Unidos —Columbia, Harvard e Juilliard—, Katori, que também foi a escolhida por Tina Turner para fazer um musical sobre sua vida e carreira, conversou com Universa sobre striptease, olhar feminino e raça.

Você teve algumas experiências em clubes de strip-tease. Qual era a sua opinião sobre esses lugares?
Sendo honesta, era excitante. Mas claro que eu via tudo sob o ponto de vista masculino. Porque, quando você entra em um clube desses, o objetivo é observar essas mulheres, a dança e a ilusão de um ato sexual. Assim, de uma maneira estranha, mesmo sendo mulher, eu participava do patriarcado. O que me afastou dessa posição masculina foi perceber que elas iam muito além de tirar a roupa. As dançarinas faziam algumas das coisas mais incríveis que eu já vi, subindo no poste, girando no ar, caindo. Sempre fiquei impressionada com a força delas, mesmo quando era mais jovem. Mas admito que estava entrando naquele espaço para ficar excitada e ser uma testemunha desse show sexualizado. Anos depois, decidi fazer uma aula de pole dance. Obviamente, não consegui. Vi como aquele trabalho era difícil. E quis entender por que essas mulheres fazem aquele trabalho tão duro.

Como sua visão mudou depois da pesquisa?
A partir daí, quando eu entrava num clube, em vez de jogar dinheiro para as mulheres, eu jogava perguntas. E, como eu fazia perguntas e conversava com elas tratando-as como seres humanos de verdade, elas me mostraram sua humanidade. Entendi como mulher que elas também eram mulheres e sobreviventes e que lutavam como eu. Eram apenas mulheres que, por acaso, eram strippers. Assim, durante os seis anos de pesquisa -se bem que, francamente, devo dizer que ainda estou pesquisando-, foi isso que realmente me permitiu entender as profundezas de sua humanidade de maneiras que não tinha visto ao assistir aos shows.

Você conversou com mais de 40 mulheres. E é claro que todas são diferentes e têm razões diversas para trabalhar nesse ramo, mas alguma coisa em particular te surpreendeu?
Devo dizer que não fiquei surpresa com a humanidade delas. Eu fiquei surpresa em ver quantas mulheres entendiam que a fronteira entre libertação e exploração nesses lugares é muito pequena. Existe uma linha tênue entre o empoderamento e o desempoderamento. E é de se imaginar que, se uma mulher decidiu entrar nesse espaço, ela aceita a subjugação. Mas, na verdade, muitas ficam meio irritadas com essa noção - e com razão. E a maior surpresa para mim foi que eu aprendi que essa fronteira existe para todas as mulheres. Trabalhando num hospital ou na Casa Branca, ainda tenho de lidar com o policiamento do meu corpo, com a suposição que fazem sobre mim por ser mulher e uma mulher negra. E então esse foi um momento de eureca para mim: não importa onde estejamos neste mundo, como mulheres sempre estaremos lutando contra um sistema patriarcal. Os obstáculos podem ter formas diferentes, mas no fundo são os mesmos.

Nos episódios, a dança pode ser sexy, mas não à custa de explorar o corpo das atrizes. Foi uma escolha consciente, não?
Com certeza. O principal objetivo da série é colocar o público no salto alto dessas mulheres. Trata-se de centrar no olhar feminino. E foi muito importante para mim acertar. Me lembro de ver "Os Sopranos", com mulheres sem cabeça se despindo ao fundo, como não se fossem seres humanos completos. Eu sabia que o público ficaria emocionado com as histórias dessas mulheres se pudéssemos escapar da hipersexualização. Não vamos esconder que essas mulheres tiram a roupa para viver. É um trabalho. Mas o fato de mostrarmos que é apenas um trabalho que exige nudez faz com que a série não explore as mulheres. E é uma maneira de celebrar os corpos das mulheres, mas não pela aparência e sim pelo que eles podem fazer, porque nos concentramos na parte atlética da dança.

Como fez para afinar isso com a equipe?
Conversei muito com as diretoras, todas mulheres, os diretores de fotografia e o pessoal da iluminação. Falamos sobre como garantir que as mulheres fossem enquadradas de uma maneira que focasse em sua humanidade. Karena Evans, a diretora do piloto, e eu decidimos usar muitas cenas sob o ponto de vista das personagens. Usamos muitos close-ups para poder colocar o público na experiência no momento. Não é o ponto de vista dos homens que entram naquele clube para ver mulheres bonitas. É realmente garantir que homens e mulheres assistindo ao programa entendam como é difícil ser uma stripper.

Você escreveu muitas peças diferentes. Mas sente como uma jovem escritora negra que esperam que fale apenas de raça e feminismo?
Não sinto que minha negritude é um fardo. Nem minha feminilidade. Outras pessoas podem se sentir incomodadas. Para mim, minha negritude e minha feminilidade são presentes. Sempre senti que é minha responsabilidade refletir quem sou como ser humano. E todos sabemos que as experiências vividas nos impactam como artistas. Portanto, acho que é uma bênção em vez de um fardo.

Pergunto porque a representatividade está presente na série, que tem maioria de personagens negros. Mas "P-Valley" fala de muitas coisas: do corpo das mulheres, do patriarcado, da religiosidade, de diferenças sociais e de racismo -mas ele não é o assunto principal.
Existe essa noção de que você deve escrever coisas que representem sua revolta e seu gênero de maneira inspiradora. Mas eu sou uma mulher que quer sempre falar a verdade sobre o que as pessoas estão passando neste mundo. Quero confiar no que eu acho que é um grupo marginalizado, no fato de que eles estão nesse cruzamento de raça, classe e gênero. Não só são negros, não são apenas mulheres, não são apenas economicamente desfavorecidos. Se olharmos para todas essas interseções interessantes, sinto que as mulheres negras têm muito a dizer sobre o mundo. Como uma mulher negra com uma infinidade de experiências, só quero continuar confrontando os poderosos e não sentir o peso de ter de apresentar essas imagens de seres humanos negros perfeitos. Quero apresentar personagens verdadeiros, honestos, empáticos e com quem as pessoas se identifiquem.