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Pré-candidata à prefeitura do Rio: "Mulheres são silenciadas na política"

Renata Souza é pré-candidata à prefeitura do Rio de Janeiro pelo PSOL  - Caio Oliveira/Divulgação
Renata Souza é pré-candidata à prefeitura do Rio de Janeiro pelo PSOL Imagem: Caio Oliveira/Divulgação

Luiza Souto

De Universa

05/07/2020 04h00

Nascida e criada na Favela da Maré, na zona norte do Rio, a deputada estadual Renata Souza (PSOL), 37 anos, perdeu parentes por bala perdida, viu uma prima ser vítima de feminicídio, e teve vários outros amigos atingidos por outras formas de violência. Foi ainda a primeira da família a fazer faculdade, graças a uma bolsa de estudos, e hoje é jornalista e pós-doutoranda em comunicação pela UFF (Universidade Federal Fluminense).

Com esse currículo, a primeira mulher na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) diz estar gabaritada para ser prefeita do Rio de Janeiro. Aos que possam apontar seu discurso como vitimista, ela convida à reflexão.

"Todos que tratam de falar de vitimismo não querem conceber a ideia de uma sociedade que foi construída na lógica do racismo e do machismo."

O anúncio de sua pré-candidatura à prefeitura do Rio se deu após a desistência de seu colega de partido e deputado federal Marcelo Freixo, que já concorreu duas vezes ao cargo, em 2012 e 2016. Como justificativa para a decisão, ele disse que a esquerda está dividida. E parece que continua, já que o PT oficializou candidatura da deputada federal Benedita da Silva, que até então seria vice de Freixo. Mesmo diante do impasse se dar entre as figuras de duas mulheres, Renata reforça o quanto ainda falta para que as mulheres atinjam um patamar de igualdade na política.

"Eu fiz doutorado em que o tema era segurança pública, mas não sou instada a falar sobre isso. Dificilmente me procuram para discutir a política econômica, de saúde e cultura. A mulher é muito olhada sob o ponto de vista do cuidado, e não sob o ponto de vista da formulação. E isso é grave", diz a deputada.

Em conversa por telefone com Universa, a pré-candidata lembra ainda episódios de abuso psicológico e violência de gênero que sofreu e presenciou. E relata o medo constante, principalmente após o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, de quem foi chefe de gabinete.

Por que você aceitou o convite para ser pré-candidata à prefeitura do Rio?

Porque a desistência de Freixo trouxe uma necessidade de união do campo da esquerda e progressista. Temos uma luta contra o neofascismo, contra uma direita extremista, que põe em disputa a própria democracia, e o PSOL tem que responder a essa situação. O Freixo sempre foi entusiasta do meu processo na política. Trabalhei com ele por dez anos e depois com Marielle. Eu me encontro nessa responsabilidade político-partidária. E o Rio de Janeiro é muito simbólico porque vem daqui o campo conservador que ascendeu ao poder. As principais figuras da base do presidente Jair Bolsonaro são do Rio. Então, a gente precisa encarar a disputa da prefeitura como uma disputa que vai se nacionalizar.

Lançar a senhora para concorrer com a petista Benedita da Silva não mostra que a esquerda ainda segue dividida e fragilizada?

Estamos abertos ao diálogo com o PT. Se não for possível uma aliança no primeiro turno, faremos no segundo. E a escolha do meu nome foi justamente para a possibilidade de conversa com outros partidos. A gente ganhou um tempo importante com o adiamento das eleições, então estamos nessa tentativa. Se não se consolidou com o Freixo, como fazer a partir de agora? O Rio sempre foi muito pragmático no sentido de se votar em quem tem a máquina. Mas, nas últimas eleições, o PSOL teve uma participação muito importante, com o Freixo chegando ao segundo turno com o Crivella (atual prefeito). Houve uma reconfiguração de um voto crítico, responsável. Se a esquerda nunca esteve no poder no Rio, ela estará. Estamos tentando construir isso como alternativa real.

Ao assumir a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o ministro Luís Roberto Barroso apontou, entre as prioridades, ampliar a presença da mulher em postos eletivos. Por que o número de mulheres na política ainda é pequeno?

Primeiro porque há um pragmatismo político extremamente machista, racista, lgbtfóbico, classista. São 130 anos de República e as mulheres só começam a ter direito a votar há 88. E, quando começa a entrar no jogo da política, é quase como as capitanias hereditárias: o cargo é herança do pai, do marido. E o homem continua reproduzindo que ali não é lugar da mulher. Existe outra lógica importante que é o próprio olhar da mulher na política, em que se imagina que ela só vá falar sobre mulher, ou de preta, se for preta, mas não é convidada a falar de outros temas. Eu fiz doutorado em que o tema era segurança pública, mas não sou instada a falar sobre isso. Claro que na Comissão de Direitos Humanos (da Alerj) ainda consigo fazer esse debate, mas dificilmente me procuram para discutir a política econômica, de saúde e cultura. A mulher é muito olhada sob o ponto de vista do cuidado, e não sob o ponto de vista da formulação. E isso é grave.

A invisibilidade mata e matou a Marielle porque só foram descobrir que ela era aquela mulher porque foi morta. Há um silenciamento das mulheres na política.

O Rio é uma das capitais mais endividadas do país. Como pretende acertar as contas da cidade, caso vença as eleições?

Elas serão colocadas no lugar num pacto entre os governos federal, estadual e municipal. É preciso renegociar os valores do IPTU e todas as questões relacionadas a privilégio. Precisamos entender que a carga tributária precisa estar melhor relacionada com aquilo que cada um tem para oferecer e dividir.

O governador Wilson Witzel (PSC) tem ideias bem distintas à sua pauta, além de histórico de ataques à memória de Marielle Franco (o governador participou de ato ao lado de deputados do PSL em que se quebrou placa de rua com o nome da vereadora assassinada). Num cenário em que a senhora vença a prefeitura e o governador se mantenha no cargo, como manter o diálogo?

Entendo que todos os ataques feitos a Marielle foram políticos. Sob esse ponto de vista, é tentar não tornar pessoal. Essas pessoas se elegeram com a política do ódio, com pautas bolsonaristas. Eu jamais vou me furtar ao diálogo. A gente está num momento de calamidade pública, e aqueles que fazem da política uma construção do ódio sempre terão mais dificuldade de ter diálogo. Sobre o impeachment [no início deste mês, a Alerj decidiu instaurar processo de impeachment contra Witzel, numa votação simbólica. Rodrigo Bacellar, relator do processo, quer começar a contar o prazo de sessões para votar seu impedimento nos próximos dias. Caso os deputados votem pelo impeachment, ocorreria já no fim de julho], sem dúvida, num momento como esse, de pandemia, tudo que a gente menos precisava era de uma instabilidade no governo, mas houve um rombo absurdo e superfaturamento na compra de respiradores para o combate ao novo coronavírus, além de contratos pouco transparentes para a construção de hospitais de campanha. Fica muito assinado o crime de responsabilidade do governador. Quantas pessoas não morreram nesse momento porque não tinha respirador e hospital de campanha? É uma situação limite.

A senhora teme perder a vida pelo que aconteceu com Marielle?

O temor é enorme, mas é um temor de toda a sociedade. Quando a gente tem esse grupo ascendendo ao poder, é a sociedade que está em risco. E o feminicídio político de Marielle Franco representa uma lógica muito nefasta das relações de poder. No dia seguinte ao que fui eleita deputada estadual, minhas redes sociais foram invadidas, e já tive que mudar a rotina de segurança. Cotidianamente sofro violência política, desde tentativa de deslegitimação a ataques que não são do âmbito da política. São todos os xingamentos possíveis tentando atacar a parte moral. Mas todo ataque que sofri até hoje e todo medo que senti só me impulsionaram a continuar porque trabalho para que ninguém sinta medo.

O que representa para o Rio de Janeiro ter como pré-candidata uma mulher preta, feminista, da favela e doutora?

Significa que o Rio vai ter a oportunidade de votar numa pessoa que representa a maioria da população, que são mulheres e negros e que está completamente esquecida pelo poder público. Representa ter uma pessoa que viveu o ônibus lotado, não tinha dinheiro para pagar a passagem, faltou à escola porque estava tendo tiroteio, que perdeu familiares mortos por bala perdida, que pegou hepatite porque bebeu água contaminada da bica de casa, quando chegava água, uma pessoa que vive um Rio de Janeiro real.

Sou a exceção que representa a regra de exclusão social no Rio.

E como dialogar com o eleitor que acha que usar esse discurso é vitimismo?

Todos que tratam de falar de vitimismo não querem conceber a ideia de uma sociedade que foi construída na lógica do racismo e do machismo. Dialogar com essa pessoa é fazer com que ela olhe para si e veja como foi a relação que a mãe dela teve com seu pai, quais foram as privações que a irmã ou a mãe dessa pessoa tiveram por serem mulheres, é fazê-la se perguntar por que ela nunca teve uma empregada doméstica branca e de classe média. A palavra-chave é estranhamento, desnaturalização daquilo que parece normal numa sociedade que não teve uma reparação após a abolição. Todas as políticas precisam ressaltar a memória do povo negro e o papel da mulher na sociedade.

No Estado do Rio de Janeiro, a cada 20 minutos é concedida uma medida protetiva para mulheres vítimas de violência, segundo o Tribunal de Justiça. Como diminuir os números desse tipo de crime?

Entendendo as políticas públicas educacionais como estratégia. Precisamos ter um papel pedagógico e didático que ressalte todo debate com relação ao respeito às mulheres e à diversidade dentro da escola, lugar de formação da sociedade. Além disso, precisamos de políticas públicas mais concretas, de rede de proteção de mulheres e de mais compreensão. Muitas vezes, é difícil para a mulher se entender dentro do ciclo de violência, porque pelo olhar de fora ela está aceitando ser violentada. Mas ela está ali numa relação em que é dependente econômica e emocionalmente, então é preciso dar autonomia a ela, com emprego. Por último, é preciso compreender que a lógica punitivista não impede que o agressor volte a cometer o crime. Por isso, é fundamental falar sobre esse tema desde a infância, para que não tenhamos futuros agressores.

Qual foi a violência de gênero mais grave que a senhora já sofreu?

Foram algumas. Tive uma prima vítima de feminicídio, e a família toda carrega isso. A gente sabia que ela sofria violência, mas numa época em que não existia a construção conceitual do crime de feminicídio, porque aconteceu há 20 anos [a lei que inclui o feminicídio no rol de crimes hediondos foi sancionada em 2015]. A gente não tinha rede de proteção. Ainda hoje, na minha família, tem caso de violência contra a mulher. Qual família não tem a violência de gênero colocada, em maior ou menor grau, como xingamento? Já tive relacionamento em que a pessoa passou a me perseguir nas ruas depois que eu rompi, e fiquei com muito medo. Quem me protegia eram minhas amigas porque eu não sabia o que ele era capaz de fazer. Era uma pessoa super bem aceita na minha família, mas, quando terminei, o cara se transformou. Eu chegava em casa com ele na minha porta. Foi uma época aterrorizante. E minha família achando que esse tipo de atitude é amor. Não é! É abuso, uma violência psicológica.