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Daniela Mercury: Como mulher, falar de prazer é difícil. Imagine como LGBT

Daniela Mercury promove, neste domingo, a Live do Orgulho, a partir das 18h, no seu canal no YouTube - Celia Santos/Divulgação
Daniela Mercury promove, neste domingo, a Live do Orgulho, a partir das 18h, no seu canal no YouTube Imagem: Celia Santos/Divulgação

Luiza Souto

De Universa

28/06/2020 04h00

Daniela Mercury marcou para este domingo (28), Dia do Orgulho LGBTQ+, uma live. Para celebrar a data, ela vai apresentar sua versão para "Toda Forma de Amor", de Lulu Santos, ao lado da companheira, a jornalista Malu Verçosa, e das filhas do casal Márcia, 20, Alice, 18, e Ana Isabel, 10. "Lulu me deu a liberdade de mudar um pedaço da letra para falar sobre meu amor", diz Daniela. Na letra, ela canta: "Eu sou tua esposa, e você é minha mulher".

Em entrevista a Universa, Daniela, que virou uma espécie de porta-voz pelos direitos da população LGBTQ+, comemora o avanço nas ações propositivas a favor desse grupo, apesar de não esperar nenhuma movimentação nesse sentido do governo do presidente Jair Bolsonaro. "Nós estamos sendo atacados sistematicamente. É a ultradireita tentando encontrar um inimigo para poder manter suas bases políticas", diz. E avisa que seguirá sua luta sem temer represálias: "Ataques pessoais, quando são por causa da minha luta, não me importam. Me fortalecem".

Isolada em Salvador, onde mora, a cantora fala ainda da relação com a família em tempos de pandemia provocada pelo novo coronavírus e de como aborda com as filhas questões como sexualidade e homofobia.

Desde que assumiu seu relacionamento com Malu, há oito anos, acha que as políticas e ações voltadas para o público LGBTQ+ têm avançado?

Sim, houve avanços, como a retirada da transexualidade da lista de doenças mentais da OMS (Organização Mundial da Saúde), em 2018, e a criminalização da homofobia, por meio de uma ação no Supremo Tribunal Federal, no ano passado. Conseguimos ainda o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (decisão do Conselho Nacional de Justiça, em 2013) e o uso do nome social (decreto de 2016, da Presidência, "dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais"), entre outros. Mas ainda há uma expectativa por uma legislação mais respeitosa. Há uma ausência de leis a favor desse público, porque é uma questão ainda considerada tabu. Importante mesmo é que sejamos respeitados, como diz a Constituição. Por isso, a laicidade do Estado é fundamental. Precisamos avançar, por exemplo, em questões de empregabilidade da população trans e de educação desses jovens. O foco é conseguir que empresas olhem para essas pessoas. Acredito que elas estão se conscientizando aos poucos.

Há uma expectativa de que o governo Bolsonaro olhe mais para essas questões?

Não. A base desse governo está muito relacionada às igrejas, e há uma incompatibilidade entre governar um país laico e continuar a falar somente para esse grupo. Então, não consigo imaginar que vá haver uma mudança. Com a criminalização da homofobia no Brasil, o que deve ser feito é recorrer a ela e promover ações na Justiça. Já que a gente tem um governo que não respeita a própria Constituição, que nos ataca, precisamos usar instrumentos eficazes para que o presidente responda por seus atos. É preciso mostrar que não há espaço para isso. Mas essa mudança de consciência não chega nesse plano. É difícil. Nós estamos sendo atacados sistematicamente. Isso não é conservadorismo, só. É a ultradireita tentando encontrar um inimigo para poder manter suas bases políticas. Então, não tem nada a ver conosco, especificamente. É um dos grupos escolhidos, como as mulheres, os negros, os artistas.

Tem medo de sofrer represália pelas críticas que você faz ao governo?

Não, mas é desagradável. Eu fui alvo de muita fake news quando comecei a me manifestar contra a censura, pela militância. As redes sociais viraram um ambiente para um grupo extremista atacar artistas, ativistas, militantes. É um ataque bastante agressivo, contundente e ameaçador, mas estou aqui, lutando. Obviamente, isso amedronta muita gente, mas é preciso resistir. Tentaram, de todas as formas, me atacar. Inclusive vários políticos usaram esses ataques para se elegerem porque viram que atacar uma artista importante era a forma de conseguir mobilizar um grupo. É tudo jogada. Fiquei muito indignada porque sempre fui muito respeitosa com quem pensa diferente. Sinto que sou atacada porque defendo uma comunidade e faço campanhas que não interessam a muitos grupos. Não tem a ver com a cantora Daniela Mercury.

Artistas, como a cantora Ludmilla, revelaram ter perdido contratos de trabalho por se revelarem lésbicas. Aconteceu com você?

Eu imagino que muita coisa tenha deixado de vir. Como artista e mulher, já sofri muito preconceito. Ouvi de um diretor de gravadora que não ia me ouvir porque mulher não pensava. Imagine, 13 anos depois, eu casada com uma mulher, o que não ouviria dessa mesma pessoa. Quando se fala de sexo no mundo da arte, da ficção, ele fica num plano do erotismo e é mais aceito. Mas, quando se fala da sua vida pessoal, do seu amor, entra numa zona que gera muito conflito. Isso realmente é uma caixa de pandora, e cada pessoa vai ter que lidar com essa questão de uma maneira. Se, como mulher, falar do nosso prazer já é difícil, imagine isso no plano LGBTQ+, que entra num ambiente muito mais confuso em termos de conceito. Essa questão não está inserida no cotidiano das pessoas de maneira natural. E é lógico que quem está na linha de frente, mudando isso, cria estranhamento. Acho que é nesse sentido que se perdem contratos. Tem muita gente que prefere simplesmente não fazer parte disso. É uma lgbtfobia estrutural.

Mas chegaram a verbalizar que não trabalhariam com você por causa do seu casamento?

Não me importa porque estou feliz por poder falar desse assunto claramente, por poder viver abertamente com minha família, falar com orgulho sobre como somos e o que somos. Não lembro especificamente de alguma coisa, mas tenho certeza de que muitas pessoas deixaram de me contratar porque confundem as coisas. Ataques pessoais, quando são por causa da minha luta, não me importam. Me fortalecem.

Suas filhas têm idades bem distintas. Dá para conversar com elas sobre todos os temas, incluindo sexualidade e homofobia, no mesmo tom?

Eu falo com elas claramente. Recentemente, a de dez anos falou assim: "Mamãe, acho que uma professora não entendeu que tenho duas mães. Como eu falo com ela?". E eu respondi: "Fale quando se sentir à vontade". Claro que sabem que ela é minha filha, mas ela se sente mal quando acha que algo não está claro e não quer ficar numa situação dúbia. Então, no outro dia, ela falou, na sala: "Professora, eu tenho duas mães". Ela disse que a professora achou ótimo e falou para a turma: "Olha, gente, ela tem duas mães. Que orgulho". A gente explica que nossa família é diferente, mas que não tem nada de estranho. E que, se alguma questão surgir, elas tragam para nós. Com a minha mais velha, foi na matrícula da faculdade de direito. Ela tinha que preencher o formulário no campo "pai e mãe", e perguntou: "Como faço?". Aí a gente tem que dizer para ela que faça um documento pedindo para alterar o formulário. Por isso, é importante que todas as famílias falem das suas relações afetivas. E não estou falando da intimidade, mas do amor.

O que dizer aos que defendem que as escolas não abordem questões de gênero e de sexualidade com as crianças?

Que não tem nada a ver com sexualizar a criança, mas que elas precisam ter informações para se proteger, inclusive da violência. Claro que cada idade exige uma forma de abordar as questões que aparecem. Na internet, as informações chegam truncadas. Por isso é muito importante que as famílias sejam capazes de falar a linguagem da criança de maneira adequada, para elas entenderem o mundo em que vivem, para não sofrerem com as questões apresentadas.

É possível debater, inclusive nas redes sociais, com quem pensa diferente?

Claro. E é preciso militar nas redes sociais porque há espaço. Estamos aqui lutando, fazendo live, pra ter esse respiro. Estamos vivos e fortes e, mesmo diante do que parece uma parede gigante pra lutar, estamos atuantes. Eu achei uma vitória gigante a gente fazer a Live do Orgulho [versão virtual da Parada LGBT de São Paulo]. Foi uma outra forma de fazer a Parada e usar meu trabalho como artista.

E tudo bem usar a música para abraçar todas as causas, mesmo se você não for diretamente afetada por elas?

Sim. Minhas canções falam da cultura da minha cidade, da minha história, e também contra o racismo. Agora, gravei "Toda Forma de Amor", que é um grande hino pra gente. Para cada momento, tenho tentado pontuar as lutas, entendendo e respeitando cada protagonismo. Minha arte está vinculada a muitas lutas contra a opressão.

Você consegue trabalhar a criatividade mesmo em isolamento?

Sim. Desde o começo da quarentena, tinha expectativa de estar mais calma, mas nunca trabalhei tanto. Tenho escrito muito e, agora, estou guardando as ideias para que depois elas se tornem canções. São reflexões sobre o que a gente está vivendo. É um momento muito inusitado. Se deparar com a possibilidade de final faz com que todo mundo valorize ainda mais a vida, a forma como está vivendo. Quando vira uma questão de todos, em que todos estão em risco e ao mesmo tempo, isso é muito impactante. Um tio meu, irmão da minha mãe, foi hospitalizado por causa da covid-19 e teve sequelas. Tenho ainda amigos que ficaram doentes, mas não chegou a ser nada mais grave. E, com isso, a gente fica em suspenso. Mas estou tentando usar esse tempo da melhor forma, trabalhando, gravando. Para o músico, a demanda é grande.