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"Ainda existe tabu de que pessoa com deficiência não transa", diz ativista

Márcia Gori, ativista pela sexualidade da mulher com deficiência  - Arquivo Pessoal
Márcia Gori, ativista pela sexualidade da mulher com deficiência Imagem: Arquivo Pessoal

Manuela Aquino

Colaboração para Universa

26/06/2020 04h00

Márcia Paes Gori, 56, é uma das fundadoras da ONG Essas Mulheres, que luta pelos direitos das mulheres com deficiência. Formada em direito e servidora pública, ela teve poliomielite quando ainda era bebê, o que a deixou com pouca mobilidade nas pernas.

Até se tornar adulta andou com a ajuda de um tutor, uma aparelho que se encaixa nas pernas, e muletas. Aos 36 anos, decidiu que sua liberdade estaria em uma cadeira de rodas, para se locomover melhor. Começou a militar pela causa, mas alguns questionamentos ainda a deixavam inquieta.

"Sentia que estava em espaços onde não se falava de questões voltadas para as mulheres com deficiência, como maternidade, sexualidade, violência doméstica", diz. Foi quando decidiu preencher essa lacuna com aulas e palestras sobre sexualidade e direito à reprodução. "Ainda existe um tabu de que pessoas com deficiência não transam. E de que a mulher não é capaz de ter e criar seus filhos", diz a ativista que conta aqui a sua história.

"Costumo dizer que a gente vira ativista, mesmo sem saber, desde o momento em que nasce ou em que adquire a deficiência. Nasci em Barretos, interior de São Paulo, e aos nove meses tive poliomielite. Perdi todos os movimentos, fiquei um tempo internada e, quando tive alta, voltei para casa com vários movimentos recuperados.

Minha primeira cirurgia corretiva foi aos três anos. Aos 36, resolvi usar cadeira de rodas para facilitar minha mobilidade. Até aquele momento eu andava com um par de muletas e um aparelho, chamado tutor, em cada perna. Já tive algumas crises com relação à minha condição, mas faz tanto tempo que nem me lembro.

Nunca tive problema na minha família ou na escola. Brinquei muito de soltar pipa, andava de carrinho de rolimã. Me casei aos 25 anos, tive duas filhas e consegui cuidar das duas sem maiores problemas. Passei a ter mais conhecimento dos meus direitos como deficiente na faculdade, onde me formei advogada em 2004.

Fiz parte de associações e clubes para pessoas com deficiência e sentia que estava em espaços onde não se falava de questões voltadas para as mulheres com deficiência como maternidade, sexualidade, violência doméstica.

Desfile de roupas eróticas

Então, em 2008, minha militância começou a tomar outro caminho. Fui convidada para fazer palestras em uma feira de tecnologia, para falar com médicos e fisioterapeutas. Tive a ideia de abordar o tabu da sexualidade das pessoas com deficiência e foi um sucesso, lotava.

Com a repercussão, passei a fazer parte da feira erótica de São Paulo, a maior do setor. Havia espaço para falar sobre esse tabu, pois as pessoas pensam que quem tem deficiência não transa. Causei, levei várias mulheres com deficiência para desfilar por lá com roupas eróticas, a repercussão foi boa.

Passei a dar cada vez mais palestras em diversas cidades sobre o assunto. Abordava, além da sexualidade, direitos humanos, de reprodução e de poder ter filhos e criá-los.

Em 2013, criei a ONG Essas Mulheres, junto com a Adriana Dias Higa, antropóloga e portadora de uma síndrome conhecida como "ossos de vidro", e com a fotógrafa Kika de Castro, que tem uma agência de pessoas com deficiência. Era preciso um espaço específico para nós, pois muitas vezes não estamos incluídas no pacote feminista.

Nós não éramos olhadas, faltava uma representação nossa. Atuamos em várias frentes: em discussões, palestras, fizemos cartilha sobre maternidade para o SUS no governo Dilma.

Nosso foco também é falar exaustivamente sobre a violência doméstica para essa mulher com pouca mobilidade. Se o agressor é quem cuida dela, como ela vai deixar de se submeter a isso? Os abrigos de mulheres, em sua maioria, não têm acessibilidade, quem ajude a tomar banho, se trocar e comer, caso precise.

Não temos estatísticas oficiais neste campo. É uma questão profunda e dolorosa. Somos vistas como alvos mais fáceis para assédio sexual no trabalho. Também somos mais vítimas de assédio moral, nos empurram o que ninguém quer fazer, temos salários menores. Eu mesma trabalhei em um escritório em que minha cadeira não passava pela porta da copa. Tinha que comer no corredor, em frente ao banheiros dos homens, que tinham que pular sobre mim para passar. Se não fossem as cotas, não sei onde estaríamos.

Direito a descobrir o corpo e ter prazer

O sexo é bom para a mente e para o físico. Eu sempre fui bem resolvida com o assunto, mas não é assim para todos. Fiquei viúva há cerca de dois anos e nunca fiquei desesperada por achar um parceiro. Encontrei meu atual namorado em um site de relacionamentos.

Coloquei, logo de cara, que tinha deficiência. Ficamos amigos, trocamos mensagens e passamos a namorar, minha vida sexual está maravilhosa. Isso é qualidade de vida e precisamos garantir isso a todos com deficiência.

Muitas pessoas com deficiência ficam sem parceiros e precisam ter o direito a descobrir o corpo e a ter prazer. A nossa discussão agora é para que entrem em pauta os assistentes eróticos, como no filme "As Sessões" [no longa, uma especialista em exercícios de consciência corporal faz a iniciação sexual de um homem com deficiência]. Seria para pessoas com deficiências complexas, e a ONG faria a capacitação.

Um especialista no assunto poderia, por exemplo, ajudar uma pessoa com lesão medular a entender onde está o prazer, a descobrir os limites. Fizemos algumas audiências públicas para discutir o assunto, mas agora não temos espaço. Enquanto isso, continuo o debate. Para mim, é uma questão de saúde pública."