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Planejei bar para lésbicas por 20 anos; com pandemia, ele fechou em 4 dias

A empresária carioca Lela Gomes, que fechou temporáriamente seu bar 4 dias após inauguração Imagem: Arquivo Pessoal

Elisa Soupin

Colaboração para Universa

22/06/2020 04h00Atualizada em 22/06/2020 16h30

A empresária carioca Lela Gomes, 34, sonhou por 20 anos em ter um bar para o público lésbico. Ralou, trabalhou, realizou, e viu seu sonho se materializar no Boleia, bar no bairro do Humaitá, na zona sul do Rio, inteiramente pensado para mulheres que amam mulheres. Quatro dias depois de aberto, porém, veio a pandemia e o sonho precisou ser interrompido. Com o bar fechado há mais de 3 meses, Lela conta sua história para Universa:

"A primeira ideia do meu bar, o Boleia, surgiu quando eu tinha 14 anos. Hoje eu tenho 34. Eu assisti a um filme americano bem mamão com açúcar, que todo mundo já assistiu, chamado Show Bar. É a história de uma menina que vai para Nova York, tentando ser compositora, e para sobreviver, acaba indo trabalhar em um bar. Esse bar do filme é muito louco, é comandado por uma mulher, só tem mulher no bar, e elas fazem umas performances em cima do balcão. E eu achava aquilo o máximo: aquela mulher sozinha cuidando daquele bar e só mulher trabalhando no balcão, achei incrível. Pensei: gente, eu acho que eu quero ser isso. Mas eu sempre fui muito pessimista, então, eu guardei esse meu sonho em uma gavetinha.

Vai ser bar e vai ser para lésbicas

Quando eu comecei a me identificar como lésbica, aos 16 anos, eu abri essa gavetinha e coloquei um plus: esse meu bar tem que ser para sapatão.

Esse sonho ficou guardado, e eu fui viver, trabalhei muito, fiz mil coisas, mas sempre trabalhei com gente. Já tive marca de camiseta, já trabalhei com a [promoter] Carol Sampaio em evento, fui DJ. Mas aquele sonho do bar continuava em mim, falava pros meus melhores amigos: queria tanto ter um bar de sapatão, um lugar para as mulheres.

E, na outra ponta, eu sempre via mulheres lésbicas reclamando que faltava lugar para elas, que os gays acabavam tomando os espaços voltados para o público LGBT. Sei que teve nos anos 80, até o início dos anos 2000 um lugar ou outro no Rio muito frequentado pelo público lésbico, mas eram lugares que a gente tomava para gente, porque os lugares LGBT mesmo acabavam sendo dominados pelos homens gays.

Bar Boleia, no Rio Imagem: Divulgação
Até que, literalmente 20 anos depois, eu vi o retrocesso que estava acontecendo no país. Em 2019, quando eu vi o rumo que tomou o governo no Brasil, o preconceito aumentando em todos os âmbitos, eu falei: chegou a hora de abrir meu bar de sapatão que está guardado na gavetinha do sonho há 20 anos. Eu vou abrir.

Pelo retrocesso que a gente estava vivendo, além de ser um bar, o espaço seria um ato político e um espaço seguro para as mulheres. Eu pensava na segurança dessas clientes e gostaria que elas pudessem estar ali dentro e beijar outras mulheres em paz, sem assédio. Um lugar em que não coubesse nenhum tipo de preconceito.

O lugar ideal e mais instagramável possível

Procurei muito até encontrar o espaço certo, fui a uns 10 lugares, até que falei: pronto: é este aqui. Para idealizar o lugar, eu trabalhei também com uma arquiteta lésbica e uma outra arquiteta mulher. Só que a gente não achava muita referência. O que eu sabia é que queria um lugar muito instagramável para gerar burburinho nas redes. As pessoas amam postar fotos e stories e eu queria muito que a experiência fosse muito compartilhável em fotos.

Desejava que fosse um bar que tivesse tudo que sapatão gosta: sinuca, karaokê, cerveja de garrafa. Eu sempre amei grafite, então chamei uma grafiteira lésbica, a Dolores Esos, para grafitar o banheiro. Compramos a frente de um caminhão, gliterizamos, pintamos de roxo, colocamos um letreiro de Rebuceteie-se, fizemos um grafite da Marielle.

Um pré-requisito para a equipe: ser sapatão, bi ou trans

Eu decidi que a minha equipe seria composta apenas por mulheres. Mulheres bis, lésbicas e transexuais e queria que essa equipe tivesse gordas, negras, andróginas, que não performam feminilidade ou que tivesse mais estereótipo de sapatão também. Cada pessoa que trabalha lá representa alguém que está lá dentro. Por isso eu escolhi muito bem essa equipe.

Anunciei nas redes sociais que queria bartenders, garçonetes, auxiliar de serviços gerais, caixas e gerentes lésbicas, bissexuais e trans e que eu só iria empregar essas pessoas. Viralizou o anúncio de emprego e eu recebi mais de 1.500 emails. Li todos. Fiz muitas entrevistas, e contratei muito com meu coração, escolhi minha equipe muito bem, elas são muito parceiras.

Pensamos muito em cada detalhe, como nos nomes dos drinks da casa, a Elisa Schinner, que cuida das redes do bar, e a Fernanda, uma das minhas bartenders, criaram uns nomes engraçados, tipo: Boleia's, Adrimanga Calcanhoto, Ellen De Gengibres, Ana Caropina, Maria Gabrut e Fruit'nália.

Quatro dias de glória

Com todos os detalhes pensados, abrimos no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e tivemos que fechar, por causa da pandemia. Bem, nesses quatro dias, o bar teve uma história muito intensa, como dizem que é coisa de sapatão mesmo. A gente atingiu lotação máxima do momento que abriu, no primeiro dia, até o momento que fechou, no último, com filas enormes na porta e a galera esperando para entrar. Foram quatro dias históricos, até no nosso faturamento, que me surpreendeu. O público comprou a ideia mesmo.

Vi muita sapatão de todas as tribos, o que me emocionou muito. Tinha sapatão de 50 anos em uma mesa, as crossfiteiras, as patricinhas, as da política e todo mundo interagindo, juntando mesa. Também vi muito date.

Assim que tive que fechar as portas, me preocupei mais com as pessoas, com a saúde das clientes, das funcionárias, com a minha, com a aglomeração, então não senti tanto o baque [financeiro], estava muito preocupada com aquilo tudo. Conforme o tempo foi passando, eu fui sentindo. Sonhei 20 anos com isso, fiquei 4 dias abertos e fechei. Mas confio muito no meu público.

Com tudo pronto para quando tudo passar

Durante a pandemia, com o bar fechado, fizemos uma campanha de venda de voucher com a Heineken que teve muita saída. Isso fez com que eu tivesse certeza da fidelidade do público. Não dizem que sapatão casa rápido? Acho que com o Boleia foi assim o casamento. Sou muito pessimista, mas o Boleia me ajudou a ser mais confiante.

E, mesmo que de vez em quando bata uma bad, uma saudade muito grande, confio: o Boleia vai voltar e vai ser lindo.

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