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Faxina e racismo: o que a mãe de Any Gabrielly passou pelo sucesso da filha

Priscila com as filhas Any Gabrielly e Belinha: sacrifícios para bancar o sonho da mais velha Imagem: Acervo Pessoal

Marcela de Genaro

Colaboração para Universa

10/06/2020 04h00

Priscila Franco, 38 anos, é uma típica mulher brasileira batalhadora, daquelas que já fez de tudo: de faxinar e passar roupa a recusar convite para uma vaga no mercado financeiro, em um banco na Espanha. O motivo? Ela sabia que não poderia investir seu tempo para cuidar de outra carreira, além da qual vinha se dedicando há anos: a de sua filha Any Gabrielly, integrante brasileira do grupo Now United.

Sua aposta foi acertada. A filha mais velha de Priscila - ela também é mãe de Isabelli, a Belinha, de 10 anos- , hoje tem fãs pelo Brasil e espalhados em todos os continentes - sem exageros: Any Gabrielly acabou de bater a marca de 4 milhões de seguidores no Instagram. Além de fazer parte do grupo pop formado por 15 jovens de diversos países criado por Simon Fuller, empresário das Spice Girls e idealizador do programa de TV American Idol, entre outros, a jovem paulista que cresceu em Osasco, negra, de origem simples, de 17 anos também deixa sua marca como a voz brasileira de Moana, princesa da Disney, na versão dublada do filme, lançado em 2017.

Para que Any Gabrielly chegasse onde está, foram pelos menos 10 anos de estudo: em boas escolas de ensino fundamental e médio, inglês, estilos de dança, canto e artes cênicas. Os bastidores do que levou Any até aí incluem trocas de faxina em escritório por uma aula, trabalhos em buffet, promoção de eventos, desconto em escolas particulares por indicação de alunos, e qualquer outra forma de garantir que uma menina da periferia - que vivia num cômodo sem banheiro com a mãe e uma irmã recém-nascida - pudesse ter acesso à educação e arte.

A história de Priscila, mãe de Any, você lê a seguir.

Na escola de elite, a filha sofria com o racismo

"Sou misturada: tenho ascendência holandesa, espanhola, portuguesa, italiana e negra. Meu pai era branco, minha mãe biológica é negra. Nasci em uma família com 8 irmãos na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo. Tive mãe biológica e de criação. Meu pai adotivo, com quem eu tinha uma ligação muito forte e me criou, suicidou-se quando eu era adolescente; tinha 16 anos. Eu já trabalhava desde os 13 numa dessas lojas que têm de tudo: brinquedo, papelaria.

Priscila passou a viver o racismo depois que a filha nasceu Imagem: Acervo pessoal

Eu não sabia e não tinha sofrido racismo na minha vida. Fui viver isso com a Any. Uma vez me perguntaram se ela era adotada, tinha 1 aninho. Nessa época nós, eu e o pai da Any, negro, tínhamos bom poder aquisitivo, com carro bom. Ouvi coisas como: 'Nossa, o que ele faz? Ele é traficante?'. Certa vez respondi: 'Ah! Ontem mesmo ele roubou um banco, cuidado, hein! Cuidado com sua bolsa!'.

Fiz questão de colocar a Any numa escola de elite e pagar trabalhando de qualquer forma. Cheguei na escola e disse: 'Precisa de recepcionista? Eu fico trabalhando aqui com o que precisar no período que a Any está na aula'. Também fiz propaganda da escola e consegui desconto por trazer novos alunos.

Logo no início, ela era a única negra na sala. Sentia olhares estranhos como se julgassem que minha filha tivesse "defeito" pela cor. Até que um dia um garoto jogou bananas na Any. Na primeira vez que a ela me contou, eu disse: "não vai ser a primeira, nem a última vez. Você vai ter que aprender a se defender. Seja educada e fale com a coordenadora". Só que foi piorando e um dia ela chegou em casa chorando, desesperada, triste pra caramba. Fui ao colégio. Antes da reunião com a psicopedagoga fiquei na sala de espera no mesmo ambiente que os pais do menino. O pai me disse, talvez na intenção de melhorar as coisas: 'Sou médico e salvo qualquer pessoa; um negro que foi baleado, salvo'. Nessa hora, eu disse: 'Você acabou de ser racista de novo'.

O período mais difícil: 6 meses separada de Any

"Eu e o pai da Any nos separamos. Quando eu tinha de 27 para 28 anos engravidei novamente, da Isabelli (Belinha), de outro relacionamento. Nessa mesma época fui denunciada de maneira mentirosa ao conselho tutelar e me tiraram a guarda da Any. Foi a fase mais difícil da minha vida. Any ficou na casa da minha mãe biológica, onde também morava minha irmã Laura Carolinah. A única parte boa desse período foi que Any pode viver o dia a dia da tia, que é cantora profissional, que com didática foi uma espécie de professora 24 horas.

Enquanto isso, eu, grávida, lutei com toda a força que tinha para conseguir a Any de volta o quanto antes e provar que se tratava de uma calúnia. Não tinha dinheiro, mas gastei com advogados. Consegui um cômodo no fundo do quintal de uma pessoa que chamava de vó. Era como um lugar de guardar ferramentas, carrinho de mão, estava com carrapatos e rato. A porta foi o padrinho das meninas quem deu. Não tinha banheiro ou pia de cozinha.

Só não me matei porque estava grávida. Pensei nisso mais de uma vez. Na época, fiz o enxoval da Belinha com R$ 23. Achei um brechó que vendia 3 peças a 1 real, e customizei alguns pagãozinhos. Na reta final, a minha sogra, abençoada, me disse; toma esses R$ 200. Comprei a banheirinha e outros itens desse tipo. Any voltou a morar comigo depois de 6 meses."

'Mas fazer inglês para quê?', 'Para quê estudar em escola boa e 'passar fome?''

Priscila diz que a filha sempre foi talentosa e dedicada Imagem: Reprodução/ Instagram

"Depois que a Belinha nasceu, voltei a trabalhar assim que possível. Com a bebê pequena ficava complicado fazer faxina, mas consegui roupa para passar. Trabalhei muito para custear o melhor para a Any na época. Isso significava ser promoter, trabalhar em buffet, de tudo, até que cheguei ao banco. Fiz todos os cursos gratuitos do SESC, do SESI. Any também. Aos trancos e barrancos, consegui, e ela sempre muito dedicada.

A Any era talentosa desde pequena. Ainda pequena, fez uma peça no colégio e, ao sair do teatro, me disse: 'Hoje é o dia mais feliz da minha vida'. Ela já fazia balé, e foi então que resolvi investir. Foi uma escolha dela que eu apoiei. Se ela tivesse dito que queria algo totalmente diferente, como paisagista, por exemplo, eu investiria nesse sonho da mesma forma. Mas viver e investir neste meio artístico não é para todos. Na época a grana era muito, muito curta e é um ambiente com gente que tem dinheiro. Há muitos workshops caros, por exemplo.

As pessoas do meio simples em que vivíamos me diziam: 'Mas fazer inglês para quê?', 'Para quê estudar em escola boa e 'passar fome''? A delas é que esses investimentos deixariam a 'menina metida' .

Aos 9 anos, Any passou na audição para ser Nala, personagem da montagem musical de "O Rei Leão", no Brasil. Ela estudava de manhã, almoçava no ônibus para ir para o balé - teve um período em que estudou no Teatro Municipal - e fazia o musical na capital. Quando terminava, corríamos para o metrô não fechar e conseguirmos pegar o último ônibus para chegar em casa. Na manha seguinte, ela estava na escola novamente. Quando era bolsista em cursos, tinha que ser a melhor para não perder a vaga. Nessa época, recebi uma oferta para trabalhar com o serviço financeiro na Espanha, mas optei por seguir a vida aqui com as minhas filhas, investindo na carreira da Any que começava.

Se hoje Any está onde está, com este inglês polido e madura, não é fruto do acaso. Nada do que está acontecendo é por acaso; nada. É um resultado de trabalho duro, árduo, de formiguinha. Não fico espantada e nem vangloriada. Não é pílula mágica, é retorno de um trabalho."

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