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Médico leva pessoas que vivem com HIV pra jantar: "Não as vejo como vírus"

O infectologista Vinícius Borges: "População que vive com HIV/aids no Brasil ainda é muito solitária" Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

De Universa

29/05/2020 04h00

O médico Vinicius Borges, 32, cursava a residência em infectologia em 2015 quando atendeu um adolescente de 15 anos que tinha acabado de ser diagnosticado com aids. Gay, contou que a família não sabia da sua orientação sexual, muito menos do diagnóstico que havia recebido, e não tinha com quem se abrir. "Passei meu celular para ele e fiquei pensando em quanta gente não recebe essa notícia sem ter alguém para dar suporte", relembra.

Na mesma época, atendeu um rapaz de 28 anos que vivia com HIV e, durante a consulta, perguntou sobre os relacionamentos dele. "Deixei isso para lá. Tenho medo de contar para a pessoa e ela me rejeitar", respondeu o paciente. "Mas ele estava com a carga viral supercontrolada e os exames, ótimos. Expliquei que o estigma já estava mudando e que, na próxima vez, não queria ver exames, mas saber se ele tinha arrumado um peguete", diverte-se Borges.

"Você me viu como pessoa, não como vírus"

Esse mesmo paciente, diz o médico, lhe escreveu alguns dias depois agradecendo. "Falou que o tinha visto como uma pessoa, não como vírus. Ainda me emociono ao lembrar essa história. Eu, de fato, não vejo meus pacientes como vírus. Quando a gente atende tem que ser assim, é muito mais do que receitar medicamentos."

Foi ao perceber essas dificuldades básicas que resolveu criar uma página no Facebook para divulgar mais informações sobre HIV/aids e ajudar a combater o preconceito que cerca o tema. Batizou a conta de Doutor Maravilha.

"Ser um médico abertamente gay em um meio tão moralista como a medicina, cuidando da população LGBT e de pessoas vivendo com HIV/aids, é ser um aspirante a super-herói. Mas como sou gay, não queria ser o Super Homem. Decidi ser a Mulher Maravilha", conta, rindo.

Seu primeiro vídeo viralizou e teve mais de um milhão de visualizações. Ele dizia quem era, explicava seu trabalho e falava da vontade de ajudar populações vulneráveis. Depois disso, surgiram as páginas do Doutor Maravilha também no Instagram e no Twitter.

O médico então passou a ser chamado para palestras em universidades e ONGs — diz já ter feito mais de 80 em 18 estados brasileiros, inclusive em parceria com o Ministério da Saúde. E hoje já tem quase 200 mil seguidores somados nas três redes.

Ele conta receber cerca de 200 mensagens por dia, entre dúvidas e pedidos de ajuda. Mineiro e morando em São Paulo há um ano, trabalha em um consultório na capital paulista, é voluntário em uma ONG e faz plantão em clínica geral em um hospital particular durante a madrugada.

Doutor Maravilha te convida para jantar

Desde janeiro de 2019 leva a cabo outro projeto, chamado Quer Jantar Comigo?. Mensalmente, seleciona três convidados que vivem com HIV/aids por meio do Instagram e os leva a um restaurante. "Vejo que grande parte dessa população é muito solitária. São poucos que falam abertamente sobre sua sorologia, por causa do preconceito."

Nos jantares, já recebeu convidados de diferentes perfis. "Já teve homem, mulher, casal, trans, cis, hetero", conta. "Primeiro peço para eles se apresentarem e contarem suas histórias, depois seguimos a conversa. Vejo que eles ficam muito felizes de estar em um lugar falando abertamente sobre o assunto sem serem julgados, além de conhecerem outras pessoas com uma situação parecida. Dá uma sensação de pertencimento mesmo."

Com a pandemia e o isolamento social, começou a fazer a versão online do encontro. "Já fiz uma. Pedi comida para eles por um aplicativo. Deu certo", diz o médico, que já está organizando a segunda edição digital do jantar.


"Mas aids não é doença de viado?"

Ao longo da conversa, enquanto fala sobre seu trabalho e a experiência que tem, Borges costuma relembrar histórias de pacientes que já atendeu para exemplificar as questões que aborda.

Como quando deu o diagnóstico de HIV para um homem heterossexual. "Era um caminhoneiro. Cheguei e disse: 'O senhor foi diagnosticado com HIV'. Ele perguntou o que era, se era o vírus que causava a aids. E disse: 'Mas isso não é doença de viado? Eu não sou viado'."

"Acho que esse estereótipo vem do começo da pandemia [de HIV]. Quando foi identificado o vírus, ele estava principalmente em quatro grupos: homossexuais, hemofílicos, usuários de drogas e haitianos. Era a década de 1980, e a aids ficou conhecida como peste gay. Muito gente associou ao moralismo religioso, diziam que era uma estratégia de Deus para eliminar gays. E ficou pairando esse fantasma. Quem faz essa relação hoje estacionou naquela época", opina.

"Com o tempo, viu-se que a doença afeta todo mundo. Heterossexuais, mulheres, idosos. Já dei diagnóstico para uma senhora de 65 anos na UTI. Não existe mais essa ideia de grupo de risco. Todo mundo que já transou está exposto."

Para Borges, se o assunto não fosse o tabu que ainda é hoje, seria muito mais fácil para quem vive com o vírus ou a doença suportar o diagnóstico. "HIV é uma questão nossa, tem que ser discutido em mesa de bar, tem que falar normalmente, com seriedade e com a leveza que deve ter. Se não, nunca venceremos a epidemia."

HIV, aids e Covid-19

Borges explica que a pessoa que tem o vírus não tem, necessariamente, a doença. Por isso, quem vive com HIV, descobriu há pouco tempo e segue um tratamento, corre os mesmos ricos em relação à Covid-19 que a população em geral. "Se está bem, sem a doença, não tem diferença."

Ressalta, porém, que o mecanismo de morte da aids são as infecções oportunistas, como a tuberculose e como a causada pelo novo coronavírus. "Porque aí a pessoa tem a imunidade mais baixa e pode desenvolver a forma mais grave da Covid, entra no grupo das pessoas mais vulneráveis por já ter uma doença [desenvolvida]."

Explica, ainda, que apesar das duas doenças serem causadas por vírus, não há qualquer semelhança entre elas para além desse ponto. "O coronavírus tem uma sintomatologia muito rápida. Pode matar uma pessoa em uma semana. A aids, para começar a aparecer, leva de oito a dez anos."


"Quem vive com o vírus não é uma ameaça. A ameaça é a ignorância"

Um ponto importante ressaltado por Borges, e que ele sempre busca falar para os pacientes e convidados do jantar, é sobre a possibilidade de uma pessoa que vive com HIV chegar ao ponto de não transmitir o vírus mesmo em uma relação sexual sem proteção.

"A qualidade de vida, hoje, é muito melhor por causa do tratamento. O acesso não é tão democrático, por causa do estigma e das vulnerabilidades. Mas ainda assim é um passo importante. Tem muita gente vivendo com a carga indetectável, ou seja, o índice do vírus no sangue é tão baixo que nem o teste detecta."

O médico afirma que quem está nesse nível é quem menos oferece riscos a um parceiro, pois mantém seu quadro clínico sob controle. "Na verdade, são poucas as que oferecem zero risco, entre toda a população", afirma. "O perigo é quem não faz exame e mesmo assim está aí, transando e transmitindo para os outros sem saber. As pessoas que vivem com HIV não são uma ameaça. A ameaça é a ignorância."

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