Topo

Ela trabalha para salvar da Covid mulheres que moram nas ruas no Rio

Pâmela Lessa, do projeto Pretas Ruas  - Divulgação/Pretas Ruas
Pâmela Lessa, do projeto Pretas Ruas Imagem: Divulgação/Pretas Ruas

Lola Ferreira*

Da Gênero e Número, em colaboração para Universa

28/05/2020 04h00

Como ficar dentro de casa para se proteger quando não se tem uma casa? É essa a pergunta central que motiva ativistas e organizações que atuam com população em situação de rua durante a pandemia de Covid-19. À mercê da própria sorte, diante da ausência de políticas públicas que os atendam, os moradores de rua contam com apoio de pessoas comuns que se preocupam com a atual situação de quem não tem um teto para morar. Uma delas é Pamella Lessa, 29, que distribui kits de higiene e alimentação para eles, principalmente na zona norte do Rio de Janeiro.

Pamella conta que a ação com pessoas em situação de vulnerabilidade econômica teve início já antes da pandemia. Em novembro de 2019, junto com a co-fundadora Pâmela Oliveira, decidiu direcionar seus esforços de voluntariado a criar o próprio coletivo, o projeto Pretas Ruas. A motivação principal era a invisibilidade, a ausência de projetos específicos e eficientes direcionados a essa parcela da população. O Pretas Ruas também tem foco no acolhimento de mulheres que vivem em abrigos, trabalhando principalmente no resgate da sua identidade e autoestima.

"Embora mulheres não sejam a maioria na população de rua, elas são o grupo mais vulnerável às violências. E o que mais nos chocou foi a questão dessas mulheres terem que esconder sua feminilidade, não serem vista como mulheres, para não se tornarem vítimas de violências", diz Lessa.

E a percepção dela se confirma. Dados do Ministério da Saúde, compilados pela Secretaria de Vigilância em Saúde, referentes ao ano de 2017, mostram que mulheres são as principais vítimas de violências motivadas exclusivamente por uma pessoa estar em situação de rua: 56,3%. Pessoas negras são 55,8% de todas as vítimas. Não por acaso, Pretas Ruas foi o nome escolhido para o projeto de Pamella.

Com o agravamento da doença causada pelo novo coronavírus, o Pretas Ruas começou uma campanha na internet para promover a conscientização sobre as necessidades dessa população. Com o isolamento social, muitos projetos tiveram de suspender ou reduzir as suas atividades, ao passo que a vulnerabilidade da população de rua aumentou.

Pâmela Lessa (no alto), do projeto Pretas Ruas  - Divulgação/Pretas Ruas  - Divulgação/Pretas Ruas
Pâmela Lessa (no alto) com mulheres do projeto Pretas Ruas
Imagem: Divulgação/Pretas Ruas

"Eles, às vezes, têm uma refeição no dia. E se não comem, a saúde piora, ficam mais vulneráveis a contrair doenças. E também não têm acesso a higienização. Então, é preciso de mais ação", avalia.

Foco na zona norte

Atuando principalmente nos bairros de Vaz Lobo, Madureira e Cascadura, Pamella decidiu focar na zona norte carioca depois de constatar que há poucas ações sociais com o mesmo propósito naquela região. Um indicativo dessa escassez é a migração: moradores de rua que vivem em outros bairros se deslocam em dias de distribuição para garantir seus kits.

"Embora no centro do Rio possa ter um número maior, tem projetos atuando há algum tempo. Na zona norte, vimos que estava crescendo o número de população de rua e até de pessoas ajudando, mas talvez sem a articulação necessária", explica Lessa.

Para continuar distribuindo os cerca de 300 kits por visita, elas abriram uma vaquinha online, com possibilidade de doação mínima de R$ 10 para continuar com o projeto durante a pandemia de Covid-19. Os gastos também aumentaram: é preciso higienizar os produtos com mais cuidado e equipamentos de proteção para que elas consigam fazer o seu trabalho.

A ativista acredita que a quarentena, a doença e o novo vírus só ressaltaram um problema que já existia: o descaso com a população de rua: "Quem está olhando para eles são os projetos sociais. E sem apoio de grandes empresas, grandes artistas ou governo. É como se não merecessem ter o melhor atendimento e cuidado. Eles continuam invisíveis nesse período. A visão que se tem hoje é que eles não são gente, então, qualquer coisa está boa", analisa.

A falta de assistência se evidencia no medo que os moradores de rua com quem ela tem contato demonstram a cada vez que o Pretas Ruas faz uma ação: "A preocupação maior é a falta da assistência, então, toda vez eles perguntam se vamos voltar. O maior medo é estarem na rua e os projetos não estarem, por conta da pandemia".

Apoio para pequenos empreendedores

Formada em administração de empresas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pamella Lessa se aproximou do voluntariado numa época em que esteve desempregada, há cerca de três anos. O motivo de pedir demissão foi falta de identificação com o local de trabalho e com a função que desempenhava em uma grande empresa do ramo de óleo e gás. Assim, ela entrou numa busca por atividades que tivessem maior conexão com o que acredita.

"Achei na internet uma organização social, num site de voluntários, e vi nas atividades um mundo diferente. Me apaixonei pelo terceiro setor, porque me senti útil e fazendo um trabalho que gerava impacto na vida das pessoas", relembra.

Pouco tempo depois, ela voltou a ter um trabalho formal, exercendo ainda funções como administradora de empresas, mas com um foco já bem definido: ajudar quem precisa. Atualmente, ela também dedica parte do seu dia a uma mentoria gratuita para pequenos empreendedores, com mobilização de outros profissionais de mercado.

"Por uma questão cultural, muitos não têm base de conhecimento técnico. No meio dessa pandemia, eu senti a necessidade de compartilhar conhecimento. Eu quero usar o privilégio que tive, mesmo com toda a dificuldade, de ter estudado. É um retorno para a sociedade."

Pâmela Lessa, do projeto Pretas Ruas  - Divulgação/Pretas Ruas  - Divulgação/Pretas Ruas
Pâmela Lessa em ação pelas ruas do Rio
Imagem: Divulgação/Pretas Ruas

Para lidar com o novo normal

O primeiro trabalho do Pretas Ruas, ainda em novembro, foi com um abrigo para mulheres em Niterói, na região metropolitana do Rio. Lá, o apoio era para que elas retomassem suas vidas e saíssem da vulnerabilidade econômica. Das cerca de 20 mulheres atendidas, a maioria já voltou para suas casas e famílias.

E o apoio não pausou durante a pandemia. Para driblar a impossibilidade de encontros presenciais, como as oficinas de formação para o mercado de trabalho, um grupo de WhatsApp foi criado para que todas possam falar sobre suas situações socioeconômicas durante a crise: "Todas elas são autônomas, e a pandemia agravou a situação delas porque todas têm filhos".

O Pretas Ruas conseguiu se articular para garantir a entrega periódica de 15 cestas básicas, além de kits de limpeza, a elas. Também há apoio para que possam ter acesso ao auxílio emergencial oferecido pelo governo federal. O trabalho psicológico, tão importante nas atividades, não foi abandonado. Shaiene Balbino, a psicóloga que completa o trio no comando do Pretas Ruas, continua dando o suporte necessário para essas mulheres durante a pandemia.

O foco é manter uma ação que não caia no assistencialismo, mas sim nas possibilidades que essas mulheres podem ter. "Queremos mostrar que elas têm capacidade para conquistar outros espaços, para fora do assistencialismo e da caridade. É capacitação, acolhimento e assistência psicológica, para elas enxergarem que podem mais", explica Lessa.

E se o trabalho aumentou durante a pandemia, ele não irá diminuir ao fim dela. "Estamos nos preparando para, quando acabar, reforçar às autoridades e aos governantes a necessidade de olhar para essa população invisível. Esse grupo precisa ser incluído em toda a modificação que tem sido feita no mundo", finaliza.

*Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Gênero e Número