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Pacientes não conseguem vir à clínica, diz médica do Alemão sobre tiroteios

A médica da família e comunidade Nayara Rocha - Arquivo Pessoal
A médica da família e comunidade Nayara Rocha Imagem: Arquivo Pessoal

Elisa Soupin

Colaboração para Universa

27/05/2020 04h00Atualizada em 27/05/2020 22h46

A rotina da médica da família e comunidade Nayara Rocha, 30, começa cedo. Ela mora em Copacabana, na zona sul do Rio, e atravessa a cidade para estar às 7h na Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão, comunidade da zona norte. Antes da pandemia de coronavírus, ela já tinha enfrentado dificuldade para acessar o local de trabalho algumas vezes, por conta de tiroteios que a impediram de chegar. Agora, são os pacientes que, muitas vezes, não conseguem acessar a clínica.

"No meio da pandemia, a gente começou a ver diariamente conflitos. Então, em um dia que deveria ser de isolamento social, uma operação policial mata 13 pessoas. E não são só essas 13 pessoas mortas, entende, são 13 famílias e mais uma população inteira que adoece mentalmente vendo 13 corpos sendo carregados pelas ruas principais de uma favela", diz ela.

No Complexo do Alemão, assim como em outras comunidades do Rio de Janeiro, falta o básico para combater a pandemia. Água, por exemplo. As dificuldades da falta de estrutura básica se cruzam com a violência, amplificando a dificuldade de acesso à saúde. No dia 15 de maio, uma sexta-feira, uma operação policial deixou 13 mortos no Complexo do Alemão.

Já no dia 27 de abril, durante outro tiroteio, pacientes não conseguiram chegar à clínica. Agentes de saúde, que são moradores de comunidade, também não conseguiram. Ela diz que a comunidade vivia o pico da pandemia e metade dos atendimentos eram sobre suspeita do Covid.

"A gente faz um monitoramento diário para ver como a pessoa está evoluindo e quando a pessoa não está evoluindo bem, a gente precisa que o paciente volte. Nesse dia, não conseguiram voltar porque estava tendo tiroteio. Assim, você rompe com um direito fundamental, que é o acesso à saúde", diz ela.

A violência é um problema que se reflete de formas muitas vezes indireta na saúde das pessoas cuidadas por Nayara. "Existem estudos que mostram isso, e a gente observa muito também, que após um período de conflito, há um aumento da descompensação de doenças crônicas como insuficiência cardíaca, infarto e AVC, que são decorrentes desse pós-conflito", alerta a médica.

"A gente tem relatos de pacientes com óbitos domiciliares, de uma pessoa que ficou 12 horas esperando até conseguir uma remoção. Em diversas áreas, há relatos de que o Samu não chega", diz ela.

Pública, a clínica da família em que ela trabalha não tem a estrutura adequada para atender pacientes graves do novo coronavírus. Não há respiradores por lá, por exemplo, nem área para garantir o isolamento. Ela e sua equipe precisaram criar uma divisão espacial para ter espaço que fique reservado a pacientes com suspeita de coronavírus.

"A maioria das pessoas que adoece, 80% delas, não vai evoluir para nada mais grave, então a gente pode atendê-las ali. A gente foi adaptando a estrutura da clínica e preparando os profissionais para o que iria acontecer. Esses 20% que a gente não consegue tratar, encaminhamos para outras unidades", explica.

O expediente da clínica da família é encerrado às 18h. Em seus três anos de experiência, em que já precisou se proteger do fogo cruzado algumas vezes, ela acredita que a violência deixa muitas marcas psicológicas, como quando a menina Agatha foi assassinada. "Naquele momento, houve uma demanda muito grande de crianças em adoecimento mental, sem querer ir para escola, sem querer entrar na kombi", conta.

Contudo, por mais que veja na violência um problema grave, a médica acredita que durante a pandemia, outras demandas essenciais afloram. "A questão da violência territorial é bastante normalizada, as pessoas já vivem aquilo diariamente. Na pandemia, há questões mais estruturais, não tem intervenção do estado para cuidar daqueles territórios, prover coisas básicas, como saneamento, condições de manter o isolamento, isso afeta mais que a violência", diz Nayara.