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Ela escapou da violência doméstica, mas morreu por causa de uma máscara

Sandra Ribeiro morreu porque empresário se recusou a usar máscara para evitar contágio do novo coronavírus - Reprodução/Facebook
Sandra Ribeiro morreu porque empresário se recusou a usar máscara para evitar contágio do novo coronavírus Imagem: Reprodução/Facebook

Luiza Souto

De Universa

24/05/2020 04h00

A filha única da diarista Izabel Ribeiro, 70 anos, engravidou do primeiro e único namorado aos 27 e só estudou até o ensino médio: era bancar a família, que mora no município de Araucária, região metropolitana de Curitiba, ou a faculdade. O pai da criança, identificado como Marino Pereira e com quem Sandra Maria Aparecida Ribeiro viveu por 15 anos e teve outro menino, hoje com 12, é acusado de agredi-la e ameaçá-la de morte, conforme consta em boletins de ocorrência aos quais Universa teve acesso. Mas, quando ela resolveu dar um basta na violência, morreu vítima de outra ignorância.

Eram 16h de terça-feira, 28 de abril, quando o empresário Danir Garbossa, 58, recusou-se a entrar no hipermercado Condor, em Araucária, usando máscara de proteção. Por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o item passou a ser obrigatório no estabelecimento, para ajudar a evitar o contágio.

Diante da negativa, Garbossa foi impedido pelo segurança Wilhan Soares, 28, de seguir adiante. Os dois discutiram e se agrediram. O empresário tentou tirar a arma do segurança, que acabou dando dois disparos. Um pegou em Sandra. Ela era fiscal no estabelecimento, onde trabalhava havia oito anos. Sandra morreu no local. O empresário também foi atingido, sem gravidade.

Ao telefone, dona Izabel diz sentir-se incapaz de mensurar a dor pela perda da única filha —ela teve um bebê antes, que morreu ao nascer. A mãe conta como Sandra viveu e escapou da violência doméstica e como acabou sendo vítima de outra tragédia. Acompanhe o relato:

"Sempre fui contra esse relacionamento com o ex-marido da Sandra. Ele era esquisito e gritava muito com minha filha e meu neto mais velho. Sentia ciúme. Uma vez, Sandra chegou do trabalho, depois da meia-noite, e ele começou a gritar, dizendo que ela não estava lá. Sempre foi grosso, inclusive comigo.

Minha filha ainda ficou morando com ele por 15 anos, muito em função dos filhos. Quando decidiu tirar ele de casa, sofreu ameaças.

No boletim datado de 20/06/2016, feito na Delegacia da Mulher em Araucária, Sandra relata que o marido não aceitava a separação e a ameaçava de morte. Ele teria dito a ela que "colocaria fogo em tudo ou mataria a todos" se ela não lhe desse sua parte na construção da casa onde os dois viviam. O imóvel fica no terreno da família de Sandra.

Uma vizinha veio me contar que, certa vez, ele apontou a arma para a Sandra e disse: 'Se não voltar comigo, vou matar você'. Fui tirar satisfação com ela, que confirmou a história. Sandra não contava tudo que sofria, com medo de eu fazer algo.

Se tivesse denunciado, eu poderia ter feito mesmo alguma coisa. Sou casada há 46 anos e nunca vi uma coisa dessa, uma mulher tomar tapa de marido. Jamais.

Esse homem acabou com nosso sossego. Desde o início. Quando minha filha engravidou do mais velho, ele disse: 'Esse filho não é meu'. Mas foi o único namorado dela.

Esse mesmo filho ainda presenciava as agressões. E sofria com elas também. Quando ele tinha uns 11 anos, não passou de ano na escola e o pai chegou a bater a cabeça dele na parede. Mas agora, com a morte da Sandra, resolveu pedir a guarda do menor, que está aqui em casa. O mais velho já está morando com ele.

No boletim datado de 20/03/2013, feito na Delegacia da Mulher em Araucária, Sandra relata que o homem a teria xingado, pegado uma faca e tentado estrangulá-la durante uma discussão. Consta ainda que ela chamou a polícia e os agentes foram ao local. Mas, quando saíram, o homem teria pegado um frasco de álcool e ameaçado colocar fogo na casa. Sandra registrou ainda que ele maltratava os filhos.

Sandra era calada e gostava das coisas certas. Achava que ia colocar o ex na linha. Era caprichosa, arrumava todo o terreno pra gente, a casa.

A gente vem de uma família pobre e não podia dar mais estudo pra ela, mas ela conseguiu terminar o ensino médio. Uma vez, falei que eu sentia muito por não pagar uma faculdade e ela disse: 'Tudo bem. Foi escolha minha não fazer, porque o pouco que tenho era para manter minha vida'.

O ex dela vivia de bico e não parava em nenhum emprego.

"Às vezes penso que ela morreu para descansar um pouco dele"

Depois que ela conseguiu se livrar desse homem, vem essa tragédia no mercado. Às vezes, penso que minha filha morreu para descansar um pouco depois de escutar tanta baboseira desse homem. Não deu tempo nem de refazer a vida.

Ela era tudo pra mim e morreu por uma coisinha à toa, uma máscara. A gente está muito machucado, mas não vou acusar ninguém. Por mim, [o empresário que provocou a briga] ficaria o resto da vida preso. Só não quero olhar na cara, nem saber mais sobre esse caso. Porque queria era minha filha aqui.

Ela trabalhava direitinho, das 14h até meia-noite, nunca atrasou. Quando pediam, ela ficava até mais tarde. Mas abriram o mercado no dia do velório dela. Nem isso respeitaram.

Não recebemos assistência, só doações de alimentos dos amigos. O que o mercado fez foi pagar o enterro. Estamos nos virando com um salário, que meu marido ganha por invalidez. Eu sempre trabalhei como diarista e não consegui minha aposentadoria. Parei há cinco anos e a Sandra que assumiu as contas. Nós vivíamos de aluguel e ela ajudou a comprar o terreno onde moramos hoje.

Agora me ponho a rezar todos os dias por ela. Se está me ouvindo, não sei. É difícil. Se a mãe que perde um de dez filhos sente falta dele, imagine tirar a única que eu tinha"

Outro lado: "Nunca passou de agressão verbal"

O advogado de Marino, Flavio Ramos Mendes, afirma em nota que ele e seu cliente não concordam com qualquer tipo de agressão, "contra mulheres e qualquer pessoa". E fala ainda que os boletins de ocorrência apresentados "são fatos pretéritos" e "isolados", que não demonstram a relação do casal. Ele diz que Sandra e o ex-companheiro viviam como grandes amigos, um ajudando o outro.

Segundo Mendes, a relação entre os dois se desgastou porque a família de Sandra nunca aceitou o relacionamento do casal, que vivia no mesmo quintal de seus pais. O advogado resume:

"Então, a relação foi se desgastando ao ponto de terem alguns contratempos que originaram no boletim de ocorrência mencionado. Todavia, precisa ser considerada a situação. Sandra fez tal boletim impulsionada pela emoção, tanto que logo após a denúncia, na primeira audiência, ela já informou ao Ministério Público e ao juiz, na presença de advogados, que não queria representar contra seu ex-companheiro, pois tudo estava bem. Ora, se realmente ela tivesse sofrido tantas agressões e ameaças como falam, por que ela não deu continuidade ao processo?", ele questiona.

Após informar que o cliente respeitou a decisão de Sandra de se separar e que ajudou nos cuidados com os filhos, o advogado concluiu:

"Diante de tudo, pode-se dizer que houve algumas trocas de agressões verbais entre o casal, mas não passou disso, Não podemos falar que Sandra sofreu com seu ex-companheiro, pois teve dois filhos com ele, viveram mais de 15 anos juntos e nos últimos 4 anos continuaram felizes sendo grandes amigos. Marino não teria coragem de fazer nada com a mãe de seus filhos".

Sobre os filhos, o advogado informa que, se o cliente fosse "tão ruim", o mais velho não teria ido morar com ele após a morte de Sandra, e que o mais novo só não foi morar com ele ainda "porque a Justiça ainda não permitiu".

Sobre o crime no hipermercado

A assessoria de imprensa da Polícia Civil de Araucária informou que Garbossa segue preso. Se condenado, ele pode responder por agressão, injúria, dano qualificado, violação a determinação do poder público e homicídio por dolo eventual, quando se assume o risco de que o crime ocorra. Por e-mail, a defesa do empresário informou que não iria se pronunciar sobre o caso.

O segurança Wilhan Soares também foi preso no dia da confusão, mas pagou fiança de R$ 10 mil após audiência de custódia e foi liberado provisoriamente. Ele alegou legítima defesa, e pode ser qualificado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.

A empresa Protege, para quem o segurança presta serviço, informou, em nota, que "a empresa lamenta profundamente o ocorrido e presta total solidariedade à família e aos amigos da vítima". E termina dizendo que segue à disposição das autoridades para colaborar com as investigações em curso.

Questionamos à Protege e ao supermercado se Wilhan segue trabalhando, mas não obtivemos resposta. Também por e-mail, a assessoria do supermercado Condor mandou a seguinte nota: "Neste momento de dor e tristeza, com a perda de nossa querida colaboradora Sandra Ribeiro, o Condor lamenta profundamente o ocorrido e se solidariza com seus familiares e amigos". O supermercado informa ainda que está prestando todo o apoio e ajuda à família e contribuindo com as investigações.

Para o advogado da família de Sandra, Igor José Ogar, o empresário foi "o articulador" do crime, enquanto o vigilante agiu com imperícia, quando o correto seria ter conduzido a situação de modo diferente. Além de pleitear que o mercado e a empresa de segurança arquem com os custos da família de Sandra, o advogado pede que os pais da vítima sigam com a guarda de seu filho caçula.