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Escalpelada e abandonada no hospital, ela adotou 9 filhos e ajuda vítimas

A costureira Maria Trindade: acidente com motor do barco a fez perder o couro cabeludo  - Arquivo Pessoal
A costureira Maria Trindade: acidente com motor do barco a fez perder o couro cabeludo Imagem: Arquivo Pessoal

Abinoan Santiago

Colaboração para Universa

19/05/2020 04h00

Em 28 de agosto de 2007, uma mulher chamou atenção do Brasil ao deixar em silêncio o alvoroçado salão verde da Câmara dos Deputados. Ela tirou a peruca que usava e deixou à mostra as marcas do escalpelamento sofrido na infância, em Portel, no Pará. Ela perdeu o couro cabeludo por inteiro após seus fios terem se enroscado no eixo do motor do barco do pai.

"Se caísse uma agulha no chão, todo mundo iria escutar. Não me deram oportunidade de fala, então decidi mostrar para todo mundo como eu era", lembra a costureira Maria Trindade Gomes, hoje com 51 anos. O ato tinha um propósito claro: Maria queria chamar atenção para as vítimas de escalpelamentos na Amazônia, que sofriam com o ostracismo em meio aos acidentes nas embarcações, característicos de áreas ribeirinhas. Conseguiu: hoje, uma lei obriga barcos a terem uma proteção no eixo do motor.

O protesto de Maria aconteceu na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, evento que não tinha em seu plano nada sobre possíveis políticas públicas para vítimas de escalpelamento. Por isso, Maria resolveu levar sua própria história para mobilizar o poder público.

Maria Trindade 1 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A costureira fundou uma associação para ajudar vítimas, mas hoje mantém um projeto solo
Imagem: Arquivo Pessoal

Ao perder o couro cabeludo, aos 7 anos, ela foi abandonada pela família no hospital. Lá, ficou internada até os 15 anos. A falta de assistência familiar a motivou a praticar a adoção. Além dos dois filhos biológicos, a costureira criou outros nove.

Depois de fazer sua história ser ouvida, a reivindicação de Maria surtiu efeito. Um projeto tramitou no Congresso Nacional e virou lei em 2009, de 11.970. A data da manifestação solitária realizada na Câmara dos Deputados também se tornou símbolo da luta e virou o Dia Nacional de Combate ao Escalpelamento, lembrado todo 28 de agosto.

Números mais baixos

Os números refletem a luta da costureira. Além de obrigar os donos de barcos a protegerem o motor, a lei efetivou campanhas de prevenção e doação de lonas para a cobertura dos eixos.

Essas medidas fizeram cair os casos no Amapá, por exemplo. Dos quatro registros em 2009, a quantidade caiu para apenas três no período entre 2010 até 2015, segundo a Associação das Vítimas e Mulheres Escalpeladas, fundada por Maria.

"Para a gente ser conhecida, tive que me expor. Se não fizesse isso, ainda estaríamos no anonimato. Se essa lei [que obriga a cobertura do eixo do motor] existisse antes, não teríamos tantos acidentes", avalia.

Uma infância no hospital

O acidente de Maria Trindade aconteceu quando ela navegava com o pai em uma manhã como outra qualquer na bacia do rio Amazonas, na Ilha de Marajó (PA), onde fica Portel. Ao tentar sentar perto da popa do barco, acabou caindo. Seus cabelos enrolaram no eixo do motor, responsável por fazer as hélices girarem. O couro cabeludo foi violentamente arrancado.

O fato mudou completamente a vida de Maria, que lutou pela vida por longos oito anos. Depois de ficar um mês na unidade de saúde de Portel, foi levada para Belém, onde permaneceu internada no Hospital Militar. Ela passou pelo tratamento com dezenas de cirurgias.

Além da dor resultante das sequelas do acidente, Maria sofreu sem a família. Ela não recebeu qualquer visita dos familiares até os 15 anos, quando finalmente teve alta. "Fui abandonada. Passei anos internada e meu pai simplesmente disse que não iria gastar dinheiro, que era para me deixar morrer lá mesmo no hospital de Portel. O enfermeiro que me tirou de lá e uma amiga da família me levou para Belém", relatou.

Na capital do Pará, Maria teve ajuda de um policial militar, que era amigo dessa mulher. Ele passou a cuidar da garota até seus 15 anos. Foi o militar, aliás, quem deu a Maria suas primeiras bonecas — o que a fez descobrir o dom da costura.

"Eu desmanchava as roupinhas e fazia outras com o mesmo pano. Assim fui aprendendo, e costurar virou minha profissão. Criei meus filhos com o dinheiro da costura", conta.

Rejeição da família motivou adoção

Quando saiu do Hospital Militar, Maria também teve que receber ajuda para chegar em casa, em Portel. Lá, para sua surpresa, não foi aceita em casa, algo que até hoje não entende.

"Fiquei na casa de um gringo amigo nosso, que cuidou de mim até os 18 anos. Tinha saído meio perdida porque a minha infância foi toda dentro de um hospital", lembra. Ao casar, aos 18 anos, Maria mudou para Tucuruí, ainda no Pará. O relacionamento durou 12 anos. E foi com a separação que a costureira descobriu a adoção.

O ex-companheiro saiu de casa e a deixou com os cinco filhos dele, frutos de um relacionamento anterior. "Acabei adotando as crianças. Não tive amor de pai e mãe, mas dei os dois amores para os meus filhos porque criei sozinha", afirma.

Além das sete crianças, Maria resolveu adotar mais quatro quando, em 2000, foi para Macapá disposta a recomeçar a vida. Sustentou todos costurando para fora. "Eles passaram pela mesma coisa que eu, que não tive a presença dos pais", diz a mulher, que hoje ajuda a criar os netos.

Referência entre mulheres

Com ajuda de outras quatro mulheres escalpeladas que Maria conheceu após o evento na Câmara dos Deputados, surgiu a associação para auxiliar as vítimas do mesmo acidente, que apesar de não ser mais tão comum no estado onde vive, ainda é uma realidade. Em 2020, dois casos foram registrados pela entidade.

A associação tem a intenção de resgatar a autoestima das vítimas, sobretudo nas questões financeira e estética. São ofertados cursos de costura como alternativa de renda e perucas com fios naturais para as pessoas terem de volta a oportunidade de tocar novamente em mechas que um dia se foram pelos rios. A entidade consegue atender 186 vítimas cadastradas.

"Eu pensava que era sozinha no mundo. Quando tomei essa atitude, outras mulheres apareceram e compartilhamos as mesmas angústias, como o preconceito. Olhavam a gente de outra forma porque tínhamos cicatrizes no rosto e usávamos chapéus. Sentimos na pele isso", comenta.

Afastada da associação por opção, Maria agora milita sozinha. Ela confecciona por ano até 50 perucas com fios naturais para doar com dinheiro do próprio bolso. O motivo também tem relação com sua história de vida: a costureira ganhou a sua primeira peruca natural aos 39 anos. Até então, tinha usado apenas com mechas artificiais.

"Tinha o sonho de usar peruca com fios naturais. A vontade não era por mim, mas pelos meus filhos. Me negava às vezes a comparecer em uma reunião da escola para que não sofressem bullying", diz. "Agora faço doação com dinheiro do próprio bolso. São entre 40 a 50 perucas que geralmente doo por ano. É uma satisfação poder ajudar. Acho que sou assim por ter convivido com muita gente que me ajudou quando eu precisei."