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STF julga hoje aborto por microcefalia em casos de infecção pelo vírus zika

O filho de Clarisse Young, Matheo, nasceu com microcefalia - Arquivo pessoal
O filho de Clarisse Young, Matheo, nasceu com microcefalia Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

24/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Ação que propõe a descriminalização do aborto no caso de grávidas infectadas pelo vírus da zika foi apresentada em 2016
  • O processo é de relatoria da ministra Cármen Lúcia, que em 2012 deu um dos oito votos favoráveis à liberação de aborto em caso de anencefalia
  • Segundo o Código Penal, o aborto é permitido quando a gestação resulta de um estupro, em caso de risco de vida para a mãe e quando o feto é anencéfalo
  • Jair Bolsonaro disse que enquanto for presidente, não haverá aborto

O STF julga hoje se a mulher acometida pelo vírus zika, que provoca a microcefalia, pode escolher abortar. Não é só: na mesma ação, há vários outros pedidos de políticas públicas voltadas a famílias atingidas pela síndrome.

A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) foi apresentada pela Anadep (Associação Nacional dos Defensores Públicos) em agosto de 2016. Entre os argumentos da instituição para a permissão do aborto estão o de proteção da saúde, "inclusive no plano mental, da mulher e de sua autonomia reprodutiva".

No Brasil, o aborto só é permitido em casos de estupro, se a gravidez oferecer risco à vida da mãe e quando o feto é anencefálico. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse nesta quinta-feira (23), a um grupo de crianças e um padre que o abordou no Palácio da Alvorada que, enquanto ele estiver no cargo, "não haverá aborto".

Entre novembro de 2015 e outubro de 2019, o Ministério da Saúde foi notificado sobre 18,3 mil casos suspeitos de alterações no crescimento e desenvolvimento de crianças possivelmente relacionadas à infecção pelo vírus zika. Desse total, 3,5 mil (19%) foram confirmados.

Gasto de $ 10 mil mensais

A analista contábil Clarisse Young, 37, soube que o filho Matheo tinha microcefalia após seu nascimento, em 2014. Importante frisar que ele não foi vítima do vírus zika, mas de uma alteração genética. A moradora de São Paulo conta que enquanto investigava o que poderia estar acontecendo com o filho, durante a gestação, foi orientada por dois ginecologistas e um geneticista a interromper a gravidez. "Diziam que eu era nova, que poderia ter um filho 'normal' depois. Mas aborto não era uma opção. Eu só queria saber o que seria dele, para preparar minha casa e meu coração."

Clarisse conta que, durante algum tempo, Matheo foi dependente de ventilação mecânica devido a uma traqueostomia, e chegou a ficar internado por nove meses. Ele se alimentava por sonda e ela precisou acionar a Justiça para conseguir do Estado materiais como fraldas, insumos e cadeira de rodas.

Para bancar tudo, ela e o marido pagavam dois planos de saúde e gastavam cerca de R$ 10 mil mensais. Ela precisou parar de trabalhar para voltar sua atenção à criança. Matheo morreu de câncer no ano passado.

ADI também pede mais benefícios para vítimas

Antes da morte de Matheo, Clarisse teve outro bebê, também especial: o menino, de 3 anos, tem autismo. Depois de passar por isso tudo, ela afirma que consegue entender a mãe que deseja não querer seguir adiante com a gravidez.

"Jamais faria, mas não é fácil. Matheo sofreu muito antes de partir. Num momento de dor, de sofrimento, cheguei a falar que não teria tido meu filho se soubesse que ele sofreria tanto. Por amor a ele. Mas ele foi a melhor coisa que me aconteceu. O amor da minha vida, e por incrível que pareça, ele foi uma criança muito feliz."

Muitas outras mães, talvez a maioria, não têm condições de gastar nem a metade do que Clarisse e seu marido despendiam com Matheo, e precisam de auxílio para cuidar do filho especial. E a ADI atenta para isso.

Além do pedido de descriminalização do aborto nesse caso de microcefalia, o presidente da Anadep, Pedro Coelho, pontua que o eixo principal da sua ação são, nas palavras dele, as "políticas públicas negadas às mulheres que vivem essa realidade da microcefalia".

Por exemplo: na lei atual, para a família atingida pela microcefalia receber o benefício de prestação continuada, voltado para idosos e deficientes e no valor de um salário mínimo (R$ 1045), é preciso ter a renda familiar mínima de R$ 260 (1/4 do salário mínimo). O texto pede a retirada dessa condição.

"Também pedimos o pagamento do salário-maternidade junto ao BPC, maior acesso a métodos contraceptivos para mulheres mais pobres, como colocação do DIU, além do direito à informação sobre o zika. Políticas públicas salvam vidas", afirma Pedro.

Após quatro anos da redação do texto, Pedro reconhece avanços no período como a lei que o presidente Jair Bolsonaro sancionou no último 7 de abril, permitindo pensão vitalícia para crianças com microcefalia, no valor de um salário mínimo. Mas faz uma ressalva.

"Ela traz alguns avanços, mas nossa ação protege mais os direitos das mulheres. Essa pensão só é prevista para crianças nascidas entre 1° de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2019, sendo que o boletim epidemiológico notificou 2.054 casos prováveis de zika entre dezembro de 2019 e março último", afirma. "Então, a gente insiste na importância de essas políticas públicas serem implementadas."

Se o STF decidir aprovar o pedido, ou parte, ele será publicado no Diário Oficial e já passa a valer.

"Ação abre porta para abortos por coronavírus"

De casos confirmados de microcefalia e outras síndromes associadas à infecção pelo vírus zika, em 2015, o Ministério da Saúde contabilizou 954 vítimas. No ano seguinte, esse número subiu para 1.927. No mais recente boletim epidemiológico, entre 29 de dezembro de 2019 a março último, foram dez confirmados.

Foi debruçada nessa queda de casos confirmados que a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família encaminhou documento ao STF argumentando que não se podia discutir a permissão para abortos nesse caso. A organização pediu ainda a sustentação oral de seus dois advogados durante a votação nesta sexta, para contrapor a Anadep.

Um dos defensores, Paulo Fernando Melo da Costa cita a pandemia do coronavírus para endossar sua defesa.

"O mundo todo está mobilizado para salvar as pessoas do coronavírus, e estamos discutindo se vai matar a criança com zika?", ele questionou, antes de concluir: "Essa ação, de caráter eugênico, pode abrir uma porta até para a mãe que está com corona abortar".