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Quem foi Edith Fraenkel, enfermeira que combateu a gripe espanhola no país?

Quem foi Edith Fraenkel, enfermeira que combateu a gripe espanhola no país - Divulgação
Quem foi Edith Fraenkel, enfermeira que combateu a gripe espanhola no país Imagem: Divulgação

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

20/04/2020 04h00

Um vírus que devastou populações pelo mundo inteiro, foi recebido com incredulidade pelos brasileiros, acendeu a ira de patrões contrários ao isolamento social, impulsionou a venda disparada de medicamentos "milagrosos" e não poupou nem mesmo as autoridades do país.

Embora a cena pareça bem familiar com a Covid-19, essa é uma descrição da pandemia de gripe espanhola — cujo controle no Rio de Janeiro do início do século 20 contou com a participação de uma enfermeira feminista.

Jornal da época da gripe espanhola - Divulgação - Divulgação
Jornal da época mostra os estragos da gripe espanhola no país
Imagem: Divulgação

"Edith de Magalhães Fraenkel foi a primeira diretora da Escola de Enfermagem da USP [Universidade de São Paulo], de 1941 a 1955, sendo sábia e eficiente nessa direção", afirma o médico e professor Carlos da Silva Lacaz, no livro "A Faculdade de Medicina e a USP", sobre essa profissional de saúde que também é considerada a primeira brasileira a fazer um curso de enfermagem de três anos completos.

Do socorro a feridos de guerra ao de contaminados pela gripe

Pandemia de gripe espanhola - Divulgação - Divulgação
Hospital do Rio de Janeiro durante a pandemia de gripe espanhola em 1918
Imagem: Divulgação

Na época da gripe, em 1918, Edith ainda não era enfermeira, mas visitadora sanitária. Ela ingressou nesta atividade aos 29 anos e após concluir um curso de socorrista voluntária — que, se inicialmente preparava mulheres para lidar com feridos da Primeira Guerra (1914-1918), com o alastramento da pandemia no Rio de Janeiro deu a elas subsídios para combater a gripe.

"O certo é o que trabalho delas se estendeu para além das linhas de confronto, pois durante a gripe espanhola elas intensificaram seus esforços nos diversos hospitais, domicílios e postos de socorro, atendendo aos necessitados", informa o livro "Histórias da Enfermagem: Versões e Interpretações", desenvolvido a partir de dissertações da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

A obra acrescenta que essa mobilização feminina foi essencial para desenvolver a educação sanitária junto à população e o elo entre famílias e serviços de saúde.

Quanto à Edith, pelo seu trabalho e dedicação integral junto à sociedade durante a pandemia, recebeu o título de "sócia remida da Cruz Vermelha Brasileira". "Remida", neste caso, refere-se a quem, por ter prestado notórios esforços sociais, acaba desobrigado de qualquer contribuição.

Não foi, no entanto, o que Edith fez. Por demonstrar interesse nos problemas de saúde do país, ela preferiu integrar a equipe do Departamento Nacional de Saúde Pública, e não só se ofereceu para combater outras doenças como virou chefe do serviço de visitadoras sanitárias.

Diploma no exterior

Primeira turma de formandas - Acervo EEUSP - Acervo EEUSP
Primeira turma da Escola de Enfermagem da USP, de 1946, dirigida por Edith
Imagem: Acervo EEUSP

Ao longo da década de 1920, as discussões a respeito de reformas sanitárias, instauração de políticas de saúde pública e criação de cursos e escolas profissionalizantes, em especial para enfermeiras, ganharam força no país.

Nesse contexto, Edith enxergou a possibilidade de conquistar um diploma de curso superior fora do país e, após conseguir uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, se mudou para os Estados Unidos, onde se graduou em enfermagem.

De volta ao Brasil, ela, que também tinha no currículo um curso de magistério e experiência como educadora, ingressou na recém-criada Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, hoje Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na instituição, assumiu um cargo de instrutora, o que lhe conferiu também o reconhecimento de primeira docente brasileira a exercer o magistério de enfermagem.

Conquistas pela enfermagem

Edith contribuiu ainda para a criação da Associação Brasileira de Enfermagem e do Congresso Brasileiro de Enfermagem, a filiação do Brasil no Conselho Internacional de Enfermeiras (o país tornou-se o primeiro da América Latina a ser membro), e a publicação do primeiro número da revista "Anais de Enfermagem", atual "Revista Brasileira de Enfermagem".

Ao se mudar para São Paulo, a profissional criou, organizou e dirigiu a EEUSP (Escola de Enfermagem da USP), elaborou a base de serviços de enfermagem do Hospital das Clínicas e presidiu e participou de diversas comissões criadas com o objetivo de investigar desafios e propor soluções referentes à falta de acesso à saúde e à assistência a populações carentes.

Feminista por convicção

Além de ter desempenhado inúmeras atividades ao longo de sua carreira e em prol do desenvolvimento e progresso da enfermagem no Brasil, Edith também conquistou enorme protagonismo social e político.

Sua Escola de Enfermagem, por exemplo, foi a primeira do Brasil a aceitar homens e negros, o que era incomum nos anos 1940. Além disso, aliada à ativista feminista Bertha Lutz, filha do cientista Adolfo Lutz, lutou pelo voto feminino no Brasil e pelo direito da mulher casada exercer diversas atividades sem pedir autorização do marido.

Amália Corrêa de Carvalho, professora de enfermagem que em vida também foi presidente da Associação Brasileira de Enfermagem e do Conselho Federal de Enfermagem, registrou no livro "Edith de Magalhães Fraenkel" que ela "foi a maior figura que a enfermagem brasileira já teve" e que era uma "enfermeira por vocação e escolha consciente e feminista por convicção".

Porém, apesar de mais de 30 anos de contribuições, Edith foi forçada a se afastar de suas funções em 1955, após uma denúncia de irregularidades na Escola de Enfermagem, que menos de um mês depois foi suspensa.

Pela injustiça e humilhação com que foi tratada e sem receber depois nenhuma reparação ou consideração, Edith preferiu se aposentar a voltar ao trabalho. Morreu aos 79 anos, silenciada e com um salário que hoje é estimado em R$ 2 mil.

"Dona Edith merece pelo menos um busto em bronze a ser colocado no pátio interno ou na frente da Escola de Enfermagem da USP", pedia um artigo publicado em 2013 pela "Revista da Escola de Enfermagem da USP". "Uma mera fotografia no corredor ao lado dos demais diretores não faz justiça ao incomensurável trabalho desenvolvido que transformou a EEUSP em um 'divisor de águas', em antes e depois da enfermagem que existia na época."