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Ela faz mediação em grupo de agressores: "Se não der a mão, eles fazem m*"

A psicóloga Joelma Perrut durante aula na Escola de Homens: "Cuidar deles também é cuidar das vítimas" - Reprodução/MOV/UOL
A psicóloga Joelma Perrut durante aula na Escola de Homens: "Cuidar deles também é cuidar das vítimas" Imagem: Reprodução/MOV/UOL

Camila Brandalise

De Universa

16/04/2020 04h00

"Dona Joelma, vai dizer que a senhora nunca levou um tapa de marido?"

A frase, que faria muitas mulheres franzirem a testa pela naturalidade com que trata violência doméstica, foi ouvida pela psicóloga Joelma Perrut com "cara de paisagem". "Eles acham normal a agressão física. Não veem problema no que fizeram. Então preciso manter a calma para focar no mais importante: desnaturalizar a violência", afirma a mediadora do grupo Escola de Homens, voltado para agressores enquadrados pela Lei Maria da Penha. "Se perco a linha, eles não me ouvem."

O dia a dia do grupo é mostrado no documentário homônimo produzido pela produtora carioca Mera Semelhança, em parceria com MOV, a produtora de vídeos do UOL, e Universa. O vídeo acompanha as aulas realizadas no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Nova Iguaçu, onde Joelma trabalha (veja abaixo).

Escola de Homens

Universa

Uma das primeiras iniciativas do gênero no país, o Escola de Homens existe desde 2009 e foi iniciado pelo juiz Octávio Chagas de Araújo Teixeira. A Lei Maria da Penha prevê a criação de cursos de educação e reabilitação para agressores desde 2006, mas apenas em abril de 2020 a frequência nesse tipo de serviço passou a ser obrigatória a homens enquadrados por violência doméstica.

Joelma começou a dar aulas no grupo em 2012 e, desde então, já ensinou por que o marido não pode bater na mulher para cerca de 1.600 alunos.

Dura, mas sem perder a ternura

Joelma mediadora  - Reprodução/MOV/Universa - Reprodução/MOV/Universa
Imagem: Reprodução/MOV/Universa

Joelma fala baixo, é calma e paciente mesmo diante de comentários absurdos. "Uma vez, estava com uma blusa de alça e um homem me perguntou: 'Como seu marido deixa a senhora vir trabalhar vestida desse jeito no meio de tanto homem?'"

E, orgulhosa, completa: "Mas esse mesmo homem, depois do curso, veio me pedir desculpa pelos comentários que fez nas aulas", conta.

Ela diz notar os olhares receosos dos alunos no começo de cada curso. "Quando veem que sou mulher, não é agradável, acham que vou dar esporro." Joelma, no entanto, aplica sua técnica para ouvir e se fazer ouvida. "Nunca levanto a voz. Dou espaço para eles falarem tudo o que quiserem. Eles se sentem ouvidos e especiais e me ouvem também", explica.

"Não quer dizer que sou permissiva, vou responsabilizá-los, sim, mas sem gritar. Vou mostrar o quanto a atitude deles causa dor em uma mulher e que de nenhuma forma a gente tem que passar por violência doméstica. Mas, se levantou a voz, eu abaixo a minha."

Baixa reincidência e "mãe" dos alunos

Joelma 2 - Reprodução/MOV/Universa - Reprodução/MOV/Universa
Imagem: Reprodução/MOV/Universa

Ela diz "se arrepiar toda" ao falar do resultado do trabalho. O índice de reincidência do grupo é baixíssimo: de cada 15 alunos, um comete uma agressão novamente, e, normalmente, é alguém com problemas de adição ou psiquiátricos.

Joelma se orgulha dos agradecimentos ao final de cada turma: "Hoje eu sei que errei", "agora eu percebo minha parcela de culpa", "enxerguei a verdade" são algumas das frases que costuma ouvir nos encerramentos. É chamada de mãe e madrinha por vários ex-alunos.

Orgulha-se também do próprio feeling e da capacidade de "acreditar nas pessoas". "Teve um dia que vi um rapaz aqui no juizado que tinha chegado na casa da ex e a visto com um cara. Empurrou ela e espancou ele, quase matou. O juiz disse que ia prender. Eu vi esse rapaz no chão, acuado, conversei com ele e disse: 'Vou apostar'. Ele não foi preso e fez o curso", conta.

"E ele não teve mais registro de violência. Até hoje, de vez em quando, me escreve dizendo: 'Agradeço primeiro a Deus e depois à senhora por me ajudar a ser um homem melhor'", diz a psicóloga.

"Às vezes vejo um agressor e vou estudar seu caso a fundo. Há tanto problema na vida dele... Não que justifique a agressão, claro, mas ele também precisa de ajuda. Se tu não der a mão, ele vai fazer merda. Eu estendo a minha."

Cuidar deles é cuidar delas

Joelma é firme em sua convicção de que agressores precisam de um novo tipo de tratamento em relação a políticas públicas. "Assim como tem uma coordenadoria voltada para mulheres vítimas de violência, deveria haver algo assim para os agressores", opina.

Afirma, ainda, que os casos mais problemáticos são os de homens com menos interação social. "A maioria deles é sozinho, não tem amigos, pessoas com quem se relaciona. E, quanto mais sozinho, mais dificuldade em lidar com seus problemas", afirma. "Quando vejo que o homem quase não fala no início do curso e no final está lá, interagindo, eu me dou por realizada."

A especialista diz também que o mito da masculinidade é um dos principais pontos a serem tocados durante as aulas. No começo, porém, precisa lidar com piadas que expressam claramente a dificuldade em se admitir vulnerável. Como quando fez um exercício em que pedia para cada aluno escrever em uma folha, que tinha uma imagem de uma máscara, como ele achava que era visto pelas pessoas e o que ele realmente sentia ser.

"Um escreveu que era sensível. Ficaram de zoação. Nesse dia me segurei. Deixei eles falarem, e fazerem as piadas, depois questionei: qual o problema em ser sensível?", relembra.

"Com o passar das aulas, eles se abrem. Dizem que foram criados para serem assim. Ouviam do pai, quando criança, que, se apanhou na rua e não revidou, quando chegar em casa vai apanhar de novo", diz. "Ou então, se tiver dez mulheres, tem que comer as dez. Às vezes o cara só não está a fim, mas não pode falar isso. É tudo muito violento."

Em relação à violência contra os homens, ela cita também uma prática comum do pai levar o filho para ter a primeira relação sexual com uma prostituta. "Isso é uma agressão com o adolescente, que pode fazer sexo antes da hora — o pai nem sabe se ele quer."

Nos cursos, Joelma trata também sobre a necessidade de dividir o trabalho doméstico. "Eles acham que cuidar da casa é ser feminino. Ou que, por trabalharem fora, têm mais serviço do que a mulher com as tarefas domésticas. Aí eu explico e dou exemplos. Eu mesma prefiro ficar fora porque o serviço de casa é puxado e todos os dias a mesma coisa."

Exemplos próprios e de dentro de casa

Relatar as próprias experiências, diz Joelma, é sempre um ponto de virada nas aulas. "Digo, por exemplo, que um homem me agarrou na rua, segurou um lado da minha bunda e disse: 'Se você gritar eu seguro o outro'", conta. "Pergunto quem gosta de ser agarrado. Primeiro eles brincam e dizem que gostariam. Depois conto como me senti e como foi violento aquilo. Eles entendem na hora."

Casada e mãe de um adolescente, Joelma brinca que queria que os dois homens da casa também fizessem o curso. "Meu marido tem atitudes bem machistas também. Um dia me disse que sou a única mulher do grupo de maridos que não segue o homem em relação ao apoio ao presidente Bolsonaro. Imagina? Eu, uma feminista, sendo questionada por não seguir a opinião do marido", fala, em meio a um riso nervoso. O tema política também costuma aparecer durante as aulas. Mas Joelma diz mudar de assunto. "Não é o foco."

Sobre ser feminista, ela diz que leva esse assunto para a sala de aula para explicar que o movimento pede igualdade, e não a supremacia de mulheres sobre homens, como costuma pregar o senso comum.

Também fala de homofobia e transfobia e explica o que é identidade de gênero e orientação sexual durante um exercício em que cola, pelas paredes da sala, fotos de homossexuais e transexuais assassinados. "Tem muito pai que espanca filho por isso."

E a Lei João da Penha?

"Eles se acham vítimas do sistema e sempre perguntam por que não há uma Lei João da Penha. Dizem que a Lei Maria da Penha veio para prejudicá-los, que são agredidos também. Aí explico que eles têm o mesmo direito de registrar ocorrência. A lei de lesão corporal já existe, é o artigo 129 do Código Penal. Se for agredido pela mulher, também pode, e deve, denunciar", explica.

"'Ah, mas ela me provocou', 'ah mas ela me bateu'. Até acredito que existam esses casos, só que homens têm mais força do que mulheres. Eles devem se defender, sim, mas que se defendam criminalmente. Se não, vira olho por olho, dente por dente", afirma Joelma.

"E aí eu explico que o homem é mais forte que a mulher. O que não significa que somos inferiores nem frágeis, só que não há força de igual para igual em uma situação de agressão. E, por isso, as maiores vítimas somos nós."