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"Explosão será quando vírus chegar pra valer na favela", diz médica do RJ

Alice Pradel é médica em uma UBS no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
Alice Pradel é médica em uma UBS no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

De Universa

28/03/2020 04h00

Alice Pradel tem 26 anos e há um é formada em medicina. Desde então, começou uma especialização em medicina da família e comunidade e trabalha em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) no Morro dos Macacos, comunidade da zona norte do Rio de Janeiro.

Até duas semanas atrás, fazia atendimentos rotineiros de posto de saúde, de consultas de pré-natal a acompanhamento de doentes crônicos, como diabéticos e hipertensos. "Estávamos esperando pelas epidemias que se repetem sempre na época de chuvas, como dengue, zika, chikungunya. Aí veio o coronavírus e tudo mudou."

A unidade em que trabalha virou uma sentinela no combate à pandemia na região: recebeu kits de testes e voltou as ações para atendimento primário de pacientes com sintomas.

A médica Alice Pradel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A médica Alice Pradel
Imagem: Arquivo pessoal

Alice tirou o jaleco para, no lugar, vestir roupas de proteção, óculos, máscara e touca. É o uniforme diário da luta contra o coronavírus. "Vestir aquela roupa toda faz a gente sentir o peso do problema e da responsabilidade", conta ela, que afirma que sua unidade já teve três casos confirmados.

Abaixo, ela fala sobre o cenário que está por vir — "abril vem pesado", acredita —, sobre ser uma mulher na linha de frente de uma das maiores crises de saúde que o país já enfrentou e sobre o comportamento dos pacientes na comunidade. "Estão com medo. Pessoas com sintomas usam até perfex [pano multiúso para limpeza doméstica] como máscara."

"Se é difícil tratar piolho na condição em que as pessoas vivem, imagina um vírus desse?"

Alice prevê uma "explosão" de casos quando a covid-19 começar a se alastrar mais rapidamente no Morro dos Macacos, assim como em outras comunidades da cidade. "Abril vem pesado. Na hora que [a doença] chegar pra valer dentro da favela, vai vir muita gente doente. Não obrigatoriamente graves, mas nunca se sabe", diz.

"Aqui há famílias inteiras de cinco pessoas vivendo num cômodo só. Se é difícil tratar sarna e piolho nestas condições, que dirá um vírus desse? Não tem água sempre, não bate luz, a alimentação é precária. Falta tudo."

Segundo Alice, a doença ainda está concentrada nos bairros da zona sul carioca e na Barra da Tijuca. "Veio das camadas mais ricas, né?"

Pano de limpeza como máscara

A prioridade de trabalho na UBS é conter a disseminação do vírus. "Tanto pela doença quanto para fins sanitários", explica.

Os profissionais, sempre protegidos, avaliam os sintomas dos pacientes e, se forem leves e não houver como descartar a possibilidade de ser covid-19, passam atestado — um modelo específico, que inclui causa sanitária como justificativa. Nesses casos, não se faz o teste. Apenas se garante o isolamento social.

Alice conta que os pacientes estão com medo, apoiam a quarentena e apenas pedem os atestados para terem o respaldo de ficar em casa e garantirem seus empregos. "Eles perguntam bastante sobre o coronavírus. Às vezes, não acham de fato que estão infectados, mas procuram o atendimento para serem tranquilizados quanto ao estado de saúde", diz.

"Percebo que estão informados, mas não garanto a qualidade da informação. Em relação às indicações de uso de máscara, por exemplo: tem pessoas sem sintomas usando até perfex como máscara."

"Deixe os pronto-socorros para emergências"

Como profissional que acompanha o dia a dia da evolução da epidemia, Alice faz um apelo: "Não procurem serviços de emergência para pedir atestados de afastamento do trabalho". A previsão é que os serviços emergenciais lotem nos próximos dias e sejam cruciais para salvar vidas.

Ela orienta procurar uma UBS (Unidade Básica de Saúde) se estiver com problemas respiratórios leves ou se residir com caso suspeito de covid-19. "Pacientes sintomáticos e seus contactantes íntimos recebem atestado de até 14 dias contados desde o início do quadro, de acordo com orientação do Ministério da Saúde, para que seja feito isolamento domiciliar."

"Medo ainda não tenho"

Alice conta que já parou para pensar nos riscos que corre. "Faço o que posso para evitar que me exponha ainda mais", diz.

"Por enquanto, é só isso que está ao meu alcance. Penso nos riscos, sim, mas medo ainda não tenho. Estou tentando não entrar num looping de pensamentos em relação a isso. Seria bem ruim para mim e para quem está ao meu redor", afirma.

Ser mulher em tempos de pandemia

"Impossível dizer que não tem diferença", diz Alice ao ser questionada sobre como profissionais homens e mulheres enfrentam o momento.

"Mulheres têm uma rede de apoio, nem que sejam aquelas duas melhores amigas, e geralmente têm mais abertura para falar das crises internas em meio ao caos", afirma. "Os homens são mais carentes disso e parece que sofrem mais sozinhos, o que é uma pena, pois sofrem como nós, talvez até mais."

Com uma folga na semana, Alice diz seguir o que lhe foi recomendado: dormir bem e descansar. "Cozinho, me ocupo com coisas da casa e com meus gatos. Às vezes entro no grupo da família para dissolver fake news [risos]. Mas evito conflitos desnecessários."

Também pratica reiki diariamente — fez o curso do segundo nível (ao todo são três) há duas semanas, um pouco antes de a crise estourar. "Qualquer cenário de incerteza tende a gerar medo, pior ainda nessas dimensões. A possibilidade de perda de controle é angustiante."

Ao final da entrevista, quando a reportagem fala em "pessoas corajosas" como ela, que estão se expondo para conter a pandemia, Alice faz uma correção: "Nem é 'corajosa'. É ser uma pessoa de verdade mesmo."