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"Me perseguiu e ameaçou": como stalking, crime sem lei, aprisiona mulheres

Por ausência de lei em vigor, crime de stalking segue lei criada há 80 anos - Getty Images/iStockphoto
Por ausência de lei em vigor, crime de stalking segue lei criada há 80 anos Imagem: Getty Images/iStockphoto

Marcos Candido

12/03/2020 04h00

Em 2016, Patrícia* pediu informação a um homem em uma cidade no litoral de São Paulo. Era para ser um ato simples, corriqueiro. O pedido de ajuda, porém, deu origem à perseguição, telefonemas e mensagens insistentes até culminar em um pedido de proteção na Justiça.

A perseguição sofrida por Patrícia é comum, mas, em geral, não é tratada como crime no Brasil. Não há uma lei específica para punir o chamado "stalking". O termo em inglês é usado para explicar homens que perseguem mulheres de forma recorrente, por meio de mensagens, pela internet ou presencialmente.

No caso de Patrícia, assim que recebeu ajuda, o rapaz insistiu para conseguir seu número de telefone. Ela passou, mas deixou claro que não tinha interesse em namorar. O stalker descobriu onde ela trabalhava e, de surpresa, apareceu no endereço.

Além disso, as ligações não pararam e foi preciso bloquear o número de telefone. Em contrapartida, o homem trocou o número do DDD e estendeu as ligações para a família de Patrícia. Nas mensagens, passou a dizer que ela era garota de programa e criou perfis falsos para adicioná-la no Facebook.

Quando decidiu registrar um Boletim de Ocorrência, ouviu de delegados que encontraria dificuldade para pedir uma medida para mantê-lo afastado: até aquele momento, o ato era considerado apenas uma contravenção leve.

O caso foi levado para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que conseguiu uma medida protetiva de urgência para impedir que o agressor enviasse mensagens ou fizesse ligações para Patrícia. "Para mim, foi a pior coisa do mundo, não imaginava que pudesse me acontecer. Em momento algum, quando pedi por informação, ele demonstrou ser a pessoa má que se tornou", diz.

Não há lei específica

De acordo com a defensora Pública de São Paulo, Mariana Chaib, a ausência de uma lei específica para combater o crime de stalking dificulta o acesso das vítimas à proteção da Justiça.

O stalking poderia ser enquadrado como a contravenção penal de "molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável". O texto tem 80 anos e pode ser revertido em multa. O valor? "De 200 mil réis a 2 contos de réis".

Como contravenção não é crime, se não há ameaças diretas que possam ser comprovadas, não há investigação.

"O Boletim de Ocorrência pode ser negado em uma delegacia convencional. É preciso, então, buscar a Defensoria Pública, Ministério Público, Casa da Mulher Brasileira e até mesmo um advogado particular", explica Mariana.

A Justiça costuma utilizar artigos da Lei Maria da Penha para criar uma espécie de "crime equivalente" ao stalker. A lei entende que a violência contra a mulher também é psicológica, argumento usado para tipificar esse tipo de crime, de acordo com a especialista.

Leia relatos de Patrícia e mulheres que já passaram por episódio semelhante:

Patrícia*: "Jamais imaginei que isso aconteceria comigo"

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

"Eu o conheci em 2016. Pedia uma informação enquanto caminhava pela praia. Ele foi legal, educado. Me guiou até onde eu fui. Três meses depois, eu o reencontrei no mesmo lugar. Ele pediu meu telefone e eu passei; achei nada demais, ele só queria amizade e foi educado. Depois de um tempo, escreveu que queria casar comigo. Falei que não. Eu o bloqueei, mas ele usou um número de outra cidade para continuar a ligar.

Eu jamais imaginei que isso aconteceria comigo. Em momento algum ele demonstrou ser uma pessoa má como foi

Passados alguns meses, ele apareceu no meu trabalho após ver minhas informações no Facebook. Disse que não queria nada e o tempo passou. No final do ano passado, ele adicionou o número do meu filho e começou a mentir. Dizia que eu era garota de programa, fazia montagem comigo nua e enviava mensagens com termos horríveis. Um delegado disse que talvez não valesse a pena pedir uma medida protetiva de urgência. Mas a defensoria conseguiu uma para mim.

Renata: "Eu tenho que esperar ser agredida para ser acolhida?"

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

"Me candidatei para ser modelo no Carnaval. O recrutador me pediu fotos de biquíni ou lingerie. Eu disse que não trabalhava com esse tipo de foto e que não trabalharia se o envio fosse uma condição para o trabalho. Ele começou a me ofender e a dizer que não eu não arranjaria mais emprego em São Paulo. Me ligou 125 vezes com ameaças de morte. Dizia que sabia meu endereço e enviou fotos com um revólver. O delegado disse que não valia a pena abrir um inquérito, que não daria em nada e não valeria a pena. Meu caso só andou quando uma delegada assumiu o caso.

O sistema acha que, como ele não bateu na minha cara, não é importante.

Eu tenho que esperar ser agredida para ser acolhida? Aí é tarde demais. Já dispensei vagas de trabalho que achei serem falsas, mas que eram reais, por medo de passar por isso novamente. Não faço mais publicações nas redes sociais. Tive crises de ansiedade agudas. São medos que não passam. O stalker foi preso, mas por provas que não foram anexadas pela Promotoria, ele foi solto alguns meses depois. Ele tirou minha vida da rota, mas ninguém ajuda a colocá-la de volta."

Flávia: "Nem meu nome eu uso mais"

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

"Eu era parte de um grupo no Facebook e comentei em uma publicação que expunha o stalking de perseguição. O stalker, então, viu a postagem, descobriu em meu Linkedin onde eu trabalhava e ligou no meu trabalho até conseguir meu celular. Em uma semana, foram 34 ligações no meu número pessoal. Oito perfis falsos me adicionaram no Instagram em sequência. No meu trabalho, ele falava que era delegado e precisava do meu endereço.

Tive que me esconder. Eu que sou a vítima, tive que me esconder. Ele, que é o agressor, está solto

Depois, disse que era traficante e estava atrás de mim, com ameaças de morte. Não fui a única. Colegas que foram perseguidas por ele chegaram a ouvir do delegado de que ele era um "namoradinho", para não dar bola, e se recusou a fazer B.O. Eu saí das redes sociais. Tirei foto de rede profissional. É muito penoso não ter Justiça. Desistir não é uma opção, mas é cansativo. A gente está presa, impedida de ter direitos básicos. A gente tem uma vida extremamente privada. Ninguém me acha. Nem meu nome uso mais."