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O que querem as mulheres que participam da Marcha contra Bolsonaro

Camila Brandalise e Nathália Geraldo

De Universa, São Paulo

08/03/2020 18h22

Com teor político e de crítica a ações do governo Bolsonaro, sem deixar de lado as pautas históricas em defesa dos interesses das mulheres, grupos ocuparam, neste domingo (8), a Avenida Paulista, em São Paulo.

Com concentração levemente dispersada por conta da chuva no início da tarde, a marcha "Mulheres contra Bolsonaro - por nossas vidas, democracia e direitos. Justiça para Marielle, Claudias e Dandaras" saiu às 16h e caminhou em direção ao centro até às 18h. A estimativa da organização, no começo do ato, era de reunir 60 mil pessoas.

A intenção, segundo organizadoras ouvidas por Universa, era chamar atenção para a defesa da democracia e para a "escalada do autoritarismo do Governo", como explicou Maria das Neves, militante da União Brasileira de Mulheres (UBM), uma das entidades da organização central da passeata.

8 de março em São Paulo: passeata na Paulista

A manifestação reuniu cerca de 50 grupos, segundo representantes da organização do ato, com diferentes pautas: representantes de partidos políticos, de centrais sindicais, de professores, de indígenas, de pessoas com deficiência, contra a pedofilia, cristãs, capoeiristas, pela legalização do aborto, entre outros.

A palavra de ordem foi democracia e o discurso político deu o tom. Apesar dos perfis variados, gritos de ordem contra o atual presidente Jair Bolsonaro, contra o autoritarismo e a favor dos Direitos Humanos foram ouvidos por todos os lados nas cerca de quatro horas de protesto.

Dia Internacional da Mulher, São Paulo, 2020 - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

A questão política, no entanto, não apaga as reivindicações históricas das mulheres. "Lutamos ainda por uma vida sem violência, pelo direito de decidir sobre nosso corpo, direito ao aborto e de vivermos nossa sexualidade como quisermos", diz a coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres Nalu Faria, que também está no protesto da Paulista. "Em última instância, estamos denunciando a precarização da vida das mulheres. Nós sofremos mais com os cortes das políticas públicas, com o empobrecimento."

Universa conversou com participantes do ato para saber os motivos que as levaram a ir para a rua. Leia abaixo.

"Luto contra a violência depois que perdi uma prima em um feminicídio"

 Narubia Gonçalves 8M - Gabriela Burdmann/UOL - Gabriela Burdmann/UOL
"Hoje, nessa manifestação, estou vivendo meu luto", diz Narubia Gonçalves
Imagem: Gabriela Burdmann/UOL

Em julho de 2019, a estudante universitária Narubia Gonçalves, 30, perdeu a prima de 32 anos em um feminicídio no interior de São Paulo. "Um amigo tentou violentá-la, ela reagiu e foi morta a marteladas. Dia 19 de março seria seu aniversário. Hoje, nessa manifestação, estou vivendo meu luto", diz.

"Estou aqui pela vida das mulheres, que estão morrendo. E pelas mulheres que se ajudam. Foram minhas amigas que me apoiaram depois que perdi minha prima, que era minha irmã", conta.

"Chega de machismo e de violência contra lésbicas, trans e travestis"

Letícia Sayuri Kissu 8M - Gabriela Burdmann/UOL - Gabriela Burdmann/UOL
Letícia Sayuri Kissu: pedrada enquanto andava de mãos dadas com a namorada
Imagem: Gabriela Burdmann/UOL

A administradora Letícia Sayuri Kissu, 31, já sofreu diversos tipos de violência de gênero. Aos 16 anos, um homem ejaculou em sua perna em um ônibus. Em 2018, tomou uma pedrada ao andar na rua de mãos dadas com a namorada.

Pelo que já viveu e pelas outras pautas que considera urgentes no feminismo, foi pra rua no Dia Internacional da Mulher.

"Quero o fim da violência contra LBTs (lésbicas, bi e transexuais), que são todas as questões que acabam tendo intersecção com a pauta das mulheres", afirma.

Letícia, que diz viver há mais tempo fora do armário do que dentro, também acredita que é preciso dar mais espaço a questões LBTs dentro do movimento feminista. "A gente tem que estar em espaços de poder, onde realmente importam, na mídia. Por isso gosto de falar, vir em manifestação, trazer placa. Temos que aparecer para que nos vejam."

"Mulheres indígenas estão vivendo nas ruas e precisam de ajuda"

Roseli Augusto Barbosa 8M - Gabriela Burdmann/UOL - Gabriela Burdmann/UOL
Roseli Augusto Barbosa é neta de pataxós: "Estou aqui para mostrar que mulheres indígenas são resistentes"
Imagem: Gabriela Burdmann/UOL

Neta de pataxós, a artesã Roseli Augusto Barbosa, 49, pretende apresentar uma proposta a vereadores de São Paulo para que criem programas de ajuda a indígenas em situação de rua.

"Já vivi na rua com minhas quatro filhas. Vi o que acontece: são mulheres usuárias de drogas, que sofrem violência sexual, ou se prostituem. Na verdade, vi vários dos meus irmãos indígenas nessa situação e quero fazer algo para ajudá-los", afirma ela, que ao lado de outras cinco mulheres indígenas esteve na frente da manifestação deste domingo.

"Também estou aqui para mostrar que mulher indígena é resistente. Eu vivi na rua, comi comida do lixo, com quatro filhas. Temos que cobrar nossos vereadores e deputados para que a Secretaria de Direitos Humanos da cidade tenha um programa específico para essa população. A causa indígena não se resume à terra", diz.

"A mulher com deficiência não é lembrada"

Luciana Trindade 8M - Gabriela Burdamnn/UOL - Gabriela Burdamnn/UOL
Luciana Trindade (à esquerda, de camiseta preta): "Não encontro pessoas com deficiência nos lugares que frequento, nos movimentos políticos e sociais", diz
Imagem: Gabriela Burdamnn/UOL

Na linha de frente dos protestos, seis cadeirantes abriam o caminho para as outras milhares de mulheres que vinham na sequência.

Uma delas era Luciana Trindade, 40, consultora de diversidade e inclusão.

Em sua camiseta trazia, trazia a provocação: "Seu feminismo reconhece as mulheres com deficiência?"

"Nossa pauta nunca é lembrada, nunca é discutida. É importante estar aqui ocupando esse espaço, precisamos ser vistas para lembrarem que existimos. Nosso movimento é de resistência, somos a categoria que mais sofre por ausência de acesso", diz. "Eu não me sinto representada, não encontro pessoas com deficiência nos lugares que frequento, nos movimentos políticos e sociais. Os coletivos feministas não têm propriedade e tomam a frente disso", reclama.

"Meu grito pessoal é por ser mulher e negra"

Evangélica, Laudiceia Reis da Silva afirma: "Cristianismo não combina com ditadura" - Gabriela Burdmann/UOL - Gabriela Burdmann/UOL
Evangélica, Laudiceia Reis da Silva afirma: "Cristianismo não combina com ditadura"
Imagem: Gabriela Burdmann/UOL

A servidora pública Laudiceia Reis da Silva, 30 anos, se diz "evangélica desde berço". Deixou a igreja Batista na época das eleições presidenciais, em 2018, por não concordar com o apoio ao atual presidente, Jair Bolsonaro.

Na manifestação, ela chacoalhava uma bandeira dizendo "evangélicas pela democracia" e gritava palavras de ordem afirmando que quem é cristão não defende a ditadura.

"Hoje dou meu grito pessoal, sou uma mulher negra, sofro duas violências e, para começar, luto pelo meu direito de viver e contra racismo, é o que faz nosso país ser atrasado", afirma. "A maioria das mulheres assassinadas é negra. Os jovens, a mesma coisa. Precisam parar de nos matar", diz.

"Critico Bolsonaro porque não consigo desvincular minha fé da luta política, de defesa de pessoas vulneráveis, coisa que o governo não está fazendo. Só estou seguindo o exemplo de Cristo."

Laudiceia reforça que a vida das mulheres evangélicas não é fácil. "A gente aprende a ser submissa e, quando questiona, leva fama de baderneira desviada, dizem que ninguém vai querer casar. E a igreja ainda não é um espaço que se discute violência contra mulher. A mulher apanha, fala pro pastor e ele diz que ela precisa orar. Isso tem que mudar."

"Lutamos contra a censura e o fundamentalismo"

As amigas Luciana Maia de Souza e Ana Célia Mendonça: manifestação "dá paz" por ver pessoas com as mesmas preocupações - Gabriela Burdmann/UOL - Gabriela Burdmann/UOL
As amigas Luciana Maia de Souza e Ana Célia Mendonça: manifestação "dá paz" por ver pessoas com as mesmas preocupações
Imagem: Gabriela Burdmann/UOL

As amigas Luciana Maia de Souza, 55, e Ana Célia Mendonça, 53, foram às ruas para ter um sopro de esperança. Se dizem desanimadas com o atual cenário de "fundamentalismo e censura", e por isso, fazem coro às que pediam o respeito à democracia.

"Grito hoje contra o assédio e o abuso, coisas que toda mulher já passou. Mas também contra um fundamentalismo crescente que tem me assustado. Sou do mercado editorial e trabalho com livros didáticos. Não podemos mais falar de sereia, de bruxa, os livros são devolvidos por isso. O que está acontecendo?", questiona. "Sou mãe de uma menina e de um menino de 15 anos. Essa censura que estou vendo não é o mundo que quero que eles vivam", diz.

"Me dá paz ver essa gente toda na rua, fico feliz, porque ando muito angustiada com o que vejo acontecer", afirma.

Luciana ressalta a necessidade de luta pelos Direitos Humanos, além das pautas relacionadas a mulheres. "Me manifesto porque quero que as pessoas tenham em mãos acesso a direitos fundamentais, como educação. Para as mulheres, é pela igualdade salarial, para poder sair na rua sem ser incomodada e ter o direito sobre o próprio corpo."

Aumento da participação da juventude

Mulheres em passeata 8 de março São Paulo - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Mesmo com chuva, mulheres permanecem na Avenida Paulista por seus direitos; estimativa é de reunir 10 mil pessoas
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Além do discurso mais carregado de noções de cidadania e luta por direitos, as porta-vozes da passeata em São Paulo apontam o crescimento da participação jovem dentro do movimento. Entre as organizações que marcham na Avenida Paulista está a União Nacional dos Estudantes, a UNE, por exemplo, que leva ao debate algumas questões amplificadas — que passam pelo feminismo, liberdade da mulher e até fim da exploração de recursos naturais.

"Temos entendido que a luta feminista é internacional e o que a gente quer fazer é pensar aqui em um contexto de luta da América Latina", explica a diretora nacional de mulheres da entidade, Elaine Monteiro. "Então, nossas pautas são contra a privatização de terras e recursos naturais, da educação; no caso das mulheres, especificamente, a da não-mercantilização de nossos corpos e as mais históricas".