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Ela sobreviveu a facadas do ex e abriu bar pra minorias: "Aqui há respeito"

Valleria Lariuty, em frente ao Boteco A Revolucionária, na Barra Funda: reduto de mulheres e minorias - Arquivo Pessoal
Valleria Lariuty, em frente ao Boteco A Revolucionária, na Barra Funda: reduto de mulheres e minorias Imagem: Arquivo Pessoal

Breno Damascena

Colaboração para Universa

05/03/2020 04h00

"Não nasci para ser semente", diz Valleria Lariuty, como alguém que repete um mantra para si mesmo e para o mundo. "Quando você joga a semente na terra, ela germina e nasce de novo. Nós, pessoas, não. Se a gente morrer, não nasce de novo", diz a mulher, que resistiu a um longo relacionamento abusivo, sobreviveu a três facadas, encontrou no samba um refúgio e nas próprias vivências a inspiração para fundar o Boteco A Revolucionária.

Nascida e criada na Baixada do Glicério, bairro formado por cortiços no centro de São Paulo, Valleria é filha de um carroceiro e uma lavadeira e tem sete irmãos. Perdeu a mãe aos 12 anos, e o pai se tornou alcoólatra. Dois anos depois, como uma forma de escapar daquela situação, começou a morar com o melhor amigo de infância, então seu namorado.

Foi quando as piores tribulações começaram. Segundo Valleria, o rapaz era usuário de drogas e não tardou para que se tornasse ladrão. "Ele chegou a me proibir de sair de casa. Vivi em cárcere privado durante muito tempo", afirma. Após anos de relacionamento, com três filhos, ela decidiu se separar aos 22. A resposta do companheiro veio durante a conversa de ruptura: três facadas. "Na cabeça, na nuca e no braço", diz, apontando as cicatrizes ainda presentes no corpo.

Sete dias de hospital depois, sendo parte deles na UTI, Valleria recorreu à Delegacia de Defesa da Mulher, mas alega que isso não deu fim às preocupações que tinha. "A Justiça determinou que ele não poderia ficar a menos de 100 metros de mim. Porém, mesmo fora de São Paulo, ele continuava me ligando e ameaçando. Dizia que ia matar meus filhos e meu pai. A pior violência que sofri foi a psicológica", lamenta.

Medo e emprego de camelô

Roda de samba a revolucionaria - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Roda de samba dentro do boteco: lá, mães solo podem tocar com seus filhos
Imagem: Arquivo Pessoal

Neste período, Valleria relata, tinha medo a cada esquina que andava e enfrentava o pânico permanentemente. "Entendi que não era a polícia nem o estado que iria me proteger. Então, quando ele me ligava, passei a ser agressiva de volta", explana. Valleria menciona que atualmente o ex-marido mora em outro estado e eles não mantêm contato direto. No entanto, depois da separação, outra fase difícil lhe esperava no horizonte.

"Com três filhos, você não consegue emprego em lugar nenhum", lamenta. Valleria conta que, por falta de vagas, não foi possível matricular os filhos na creche. Precisava, então, trabalhar com eles a tiracolo. Foi vendedora de água e camelô. Em certa ocasião, quando vendia apostilas de concurso público, foi abordada pelo conselho tutelar: o tripé montado, com os livros em cima, tinha um cobertor envolvendo os três filhos pequenos embaixo.

"Por sorte, eu tinha vários protocolos das minhas tentativas de vaga na creche. A juíza que atendeu meu caso disse que eu seria prioridade e, finalmente, consegui as vagas, pouco mais de dois anos depois da primeira tentativa", relembra. "Poderia, então, buscar outras oportunidades profissionais."

Samba e o Batalhão da Vagabundagem

Começou a trabalhar como garçonete e o samba voltaria a ser protagonista da sua vida. "Sempre fui muito apaixonada por samba, mas meu marido não me deixava escutar", conta. "Depois de anos, voltei a ter contato com a arte."

O serviço era um bico servindo mesas numa galeria da 24 de Maio, no centro de São Paulo. Com as assíduas rodas de samba que ocorriam no lugar, aprendeu a tocar instrumentos, conheceu músicos e até começou a fazer parte de um grupo: o Batalhão da Vagabundagem.

Tornou-se, também, sócia do bar. No entanto, o estabelecimento faliu algum tempo depois. Valleria então mudou totalmente de carreira. Chegou a formar-se em um curso técnico de enfermagem, mas foi como educadora social que se firmou. "Trabalhei cinco anos numa ONG convivendo diariamente com mulheres que sofriam tudo o que eu tinha sofrido. A violência é constante e percebi isso vendo aquelas meninas", comenta.

"Toda mulher é revolucionária"

O envolvimento com música, as amizades que fez e as experiências pessoais de Valleria foram determinantes para o surgimento do Boteco A Revolucionária. A mulher de 37 anos disse que a ideia do nome veio de uma conversa com o marido, com quem se relaciona há mais de 11 anos e tem uma filha com pouco mais de 2 anos. "Acho que toda mulher é revolucionária", justifica.

Localizado na esquina das ruas Mário de Andrade e Lopes Chaves, na Barra Funda, o bar é carregado de referências femininas. Nas paredes, recortes de jornais e pôsteres de grandes personalidades dão um ar rústico. Os rostos de Mariele Franco, Frida Kahlo, Amy Winehouse, Nina Simone, Sabotage, Freddie Mercury e Lula são alguns dos que decoram o bar, além de citações de música e frases históricas.

Há, claro, o espaço em destaque para a roda de samba, que é preenchido por compositores independentes, e sarau às quartas-feiras, chorinho às quintas e o Batalhão da Vagabundagem às sextas. Aos sábados, o microfone fica aberto. "Queremos ser um bar eclético, sem preconceitos e que abre a porta. Tem uma galera que toca jazz, uma galera que toca samba", aponta Valleria.

Na calçada, ficam as cadeiras, quase sempre ocupadas. "Principalmente por pessoas que costumam sofrer preconceitos em outros lugares: negros, LGBTQs, mulheres e a periferia", enumera a dona do bar. Todas as funcionárias do estabelecimento, inclusive, são mulheres.

"É um bar de representatividade feminina, para todos os públicos", declara. Apesar do espaço conquistado, ela conta que ainda sofre com o machismo. "Alguns homens passam por aqui e querem colocar o preço na nossa bebida, explicar como temos que fazer o trabalho. Outros acham que têm o direito de colocar a mão na gente. Precisamos nos posicionar sempre", queixa-se. "Às vezes, estou sozinha e fico com medo, mas envio uma mensagem para minhas amigas e fico mais tranquila."

Valleria, entretanto, não esconde a própria satisfação. O boteco, segundo ela, tornou-se um lugar seguro para as mulheres. "Tem muita artista mãe solo que não consegue tocar em outros bares porque não dá para levar os filhos. Aqui pregamos o acolhimento. Pedimos para elas não se preocuparem que ajudamos a cuidar das crianças. Este bar tem um pouco do que eu sempre quis para a vida e não tinha", orgulha-se. "É um ponto multicultural e de respeito, não só um comércio."