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O dia em que decidi deixar os seios à mostra e fui de tapa-mamilos ao bloco

Júlia Flores

De Universa

21/02/2020 04h00Atualizada em 21/02/2020 17h41

Sair de casa sem sutiã já é um grande passo em uma sociedade como a nossa. Quem nunca teve que encarar um homem com o olhar "perdido" em direção aos seus seios? Não que dentro de casa a tarefa seja muito mais fácil. Desde criança a gente ouve: "Ei, menina, vai vestir uma roupa" ao ousar sair do quarto só com pouca roupa.

Se um decote já apavora, ousar a liberdade de exibir mamilos é afronta. Mas, poxa, pera lá. Por que diabos estamos discutindo isso em 2020? Em um país onde nem as mães conseguem amamentar em paz em algum local público, me pergunto por que diabos há tanto tabu ao redor dos peitos. Agora você vai pensar naquela tese que diz que peitos são fonte de excitação sexual. Adivinhem só: homens também sentem prazer nos peitinhos e nem por isso têm vergonha de exibi-los.

Eu resolvi testar como é sair com os peitos de fora no Carnaval. Por afronta mesmo. Por querer parar de sentir vergonha. E também para testar uma das tendências de 2020. O primeiro desafio já surgiu na hora de comprar o tapa-mamilos -ou pasties. Na primeira loja em que tentei, o produto estava esgotado. Sorte que o mercado das fantasias está bombando e o Centro de São Paulo está cheio de concorrência.

Nunca pensei que gastaria cerca de R$ 100 em uma coisa para tapar o bico do seio. Se para sutiã já acho caro gastar mais do que R$ 40, imagina investir esse dinheiro em algo menor e menos durável que isso. Se você também está me achando uma idiota por ter pago esse valor, não fui a única. O dono da loja me confirmou que as vendas do tapa-teta seguiam a todo vapor e que uma nova remessa dos adereços já estava a caminho. "Está todo mundo usando: até homem", me garantiu.

Saí da loja confiante de que não exibiria meus peitos sozinha. Só que a sensação não durou muito. No último sábado, fui a um bloco de rua "para sondar" se teria companhia e não vi uma cidadã com o peito de fora. O bloco a que eu fui, conhecido pelo grande número de homens héteros sem camisa por metro quadrado, concentrava milhares de pessoas na região do parque Ibirapuera. Vai ver eu tinha dado azar.

Repórter de Universa testa os pasties em bloco de pré-Carnaval - UOL - UOL
Repórter de Universa testa os pasties no pré-Carnaval do Baixo Augusta
Imagem: UOL

Meu passo a passo

Na manhã seguinte, domingo, dia em que mentalmente tinha decidido que botaria meu peito na rua, comecei os preparativos para o bloco 3 horas antes da folia começar. Estava ansiosa para preparar uma make que combinasse com meu tapa-mamilos burlesque. E também dar uns pulos para garantir que o adesivo não me abandonaria no meio da folia.

Na hora de colocar o adesivo, usei uma cola de cílios para reforçar a fixação. Primeiro lado esquerdo, depois o direito. Aí olhei no espelho e me assustei: parecia que eu tinha colado errado. Um negócio tava mais alto do que o outro. Demorei uns dois minutos para conferir que havia feito a coisa certa, grudado ambos os adereços no centro dos bicos do seio, e que o problema estava nos meus seios, um mais alto do que o outro.

Respirei fundo e me lancei para a rua. Para não assustar o Zé, síndico aqui do prédio, julguei melhor sair com uma blusa. Além disso, tinha lido em uns dez diferentes "manuais de como usar um tapa-teta" que o ideal é ir coberta até o bloco. No caminho para o metrô Consolação, onde começava o desfile, e ainda de camiseta senti alguns olhares feios por estar usando uma mini-saia. Mal sabiam o que me preparava para mostrar.

Ao deixar o metrô, sofri um pouco para cruzar a multidão e chegar perto do trio. Estava no bloco Acadêmicos do Baixo Augusta que, segundo previsões, devia receber mais de um milhão de pessoas. Preferi não pensar muito nesse monte de gente e tirei a blusa assim que cheguei à concentração.

Como estava fazendo uma reportagem em vídeo e precisava usar microfone para captar o áudio, no busto também vestia uma espécie de colar-top, o que me dava algum conforto e enganava meu subconsciente sobre estar semi-nua. As pessoas, porém, não se enganavam e muito menos desviavam os olhares.

No começo, foi vergonhoso. Involuntariamente cruzava meus braços na frente do meu peito, tentando escondê-lo. Por sorte não demorei para encontrar uma mulher que se solidarizou com a minha experiência

Repórter de Universa testa os pasties no pré-Carnaval do Baixo Augusta - UOL - UOL
Imagem: UOL
Ela não estava de tapa-tetas, mas vestia um body de tule que mostrava bastante coisa. "O que me incomoda são as outras mulheres que ficam olhando e julgando", ela me disse.

Foi com a Helena que dei meu primeiro abraço de teta de fora. E, para minha surpresa -e decepção-, não foi nada demais. Só pensei que era bem mais gostoso abraçar uma mulher sem camisa do que aqueles caras com peito cheio de pelo pontiagudo recém-aparado na gilete.

A partir dali o bloco começou a andar pela rua da Consolação. De repente vi Ana Cañas, cantora e mulher que admiro e respeito, também de tapa-tetas. Ela vestia um macacão preto de tule preto com bordados feministas e frases empoderadoras. Foi ela quem me deu o último chacoalhão para me desfazer da vergonha: "Bora se divertir e pegar uma brejinha".

A primeira crítica veio de uma mulher de 50 anos

Ok, Ana, recado anotado. Fui pegar uma brejinha e dar outra volta. De longe vi que uma mulher lá pelos seus 50 anos não tirava o olho de mim. Achei que seria interessante conversar com ela. Por que fiz isso? Ela não mediu esforços pra tentar me convencer de que aquilo era errado, de que aquilo era desconfortável, de que com um top eu ficaria mais livre para pular.

Vejam só: eu sou magra e tenho seios pequenos. E, apesar de no passado já ter encanado com o tamanho dos meus seios, hoje sou bem consciente do privilégio que tenho ao não sofrer para achar um sutiã e poder comprar a peça em qualquer loja de departamento.

Estar com o peito de fora não doía, na verdade era bem prazeroso pular, dançar e ainda sentir o ventinho refrescando o corpo inteiro

Ao falar isso para ela, ela duvidou. Eu questionei se ela não achava que tínhamos os mesmos direitos dos homens, de andar sem camisa sem sofrer nenhuma ameaça e ela respondeu dizendo que objetificação feminina era "papo de quem fumava maconha". Essa foi minha deixa para partir.

O que descobri: dá para diferenciar um olhar de reprovação de um olhar assediador. Recebi ambos, mas o segundo foi o que mais me incomodou. Homens, ainda que estivessem trabalhando, ainda que estivessem acompanhados pelas namoradas, ainda que estivessem sem camisa, de peito de fora, olhavam para os meus seios sem nem disfarçar.

No meio do bloco, cruzei com quatro caras, um deles sem camisa com fantasia de policial - era aquele típico grupo de homens na casa dos 25 anos que foi pro bloco "passar o rodo". Como era de se esperar, eles mexeram comigo. Sem dó. Passaram do meu lado olhando para o meu peito e não desviaram os olhos mesmo quando um colega que estava comigo começou a filmar a reação.

Eles pararam na minha frente, a uns 2 metros de distância. Um começou a passar a mão pelo corpo, o outro começou a fazer sinal "me chamando" com o dedo indicador. Os caras começaram a andar na minha direção e meu colega parou de gravar. Naquele momento eu senti que, se eu não tivesse gritado "não encosta que eu vou fazer um escândalo", nem mesmo aquele monte de gente, NADA teria impedido eles de tocar em mim.

Cansei e decidi ir embora. No caminho para sair do bloco, encontrei duas mulheres de tapa-tetas. O adesivo que elas usavam para cobrir o bico do mamilo era um "X" feito de fita isolante preta. Descobri que eram irmãs e que uma delas era trans. Naquele momento, o adesivo ganhou outro valor simbólico, um valor ainda mais forte de resistência política.

Depois de alguns metros caminhados fora da muvuca, recoloquei a blusa.

A minha principal conclusão foi a de que você não precisa usar um tapa-teta se não estiver à vontade. Mas precisa se sentir à vontade para usar um tapa-teta.

Por isso, escolha um bloco e ambiente confiável, -talvez um bloco LGBT? Isso me passou pela cabeça na hora e resolvi testar.

Como ainda era cedo, dei mais uma chance ao meu figurino e mudei a rota de casa em direção a um bloco de rua progressista e gay. Fui parar no "Chacoalha bixona", que fica no meio de Santa Cecília, na zona oeste de São Paulo. Lá eu dancei, pulei, e esbanjei toda a energia que estava acumulada dentro de mim por causa dos olhares punitivos que recebi no Baixo Augusta.

Foi gostoso. Consegui aproveitar a brisa pós-chuva e mais ventinho batendo direto no peito. "Eu sento, tu sente" tocava alto no carro de som que animava o bloquinho. Naquela hora me senti livre e corajosa. "Por que mamilos são tão polêmicos?", perguntei de novo, retoricamente. Se dependesse de mim, adotaria o tapa-tetas para além do Carnaval, pensei.

Mas, voltando à realidade, era fim de tarde e hora de encerrar a folia. Me cobri com a blusinha e segui caminho. Se dependesse só de nós, seria um mundo de liberdade -mas às vezes ele também é feito de medo.

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