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Alessandra Negrini x fantasia de Carnaval: o debate ajuda povos indígenas?

Nelson Antoine/UOL
Imagem: Nelson Antoine/UOL

Ana Bardella

De Universa

17/02/2020 16h23Atualizada em 18/02/2020 10h47

Alessandra Negrini, musa do bloco de rua Acadêmicos do Baixo Augusta, virou assunto nas redes sociais depois da sua participação no evento no último domingo (17). Ela foi alvo de críticas devido à caracterização escolhida: um maiô cavado e adereços que lembram a cultura indígena na cabeça. A pintura corporal é do povo Pitaguary, que a abençoou antes do início do bloco. Ao seu lado desfilaram mulheres indígenas — entre elas a ativista Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

À folha de S. Paulo, Alessandra afirmou que "a luta indígena é de todos" e que, por esse motivo, "teve a ousadia de se vestir assim". Na internet, porém, a atitude não foi bem recebida. No Twitter, mulheres indígenas se posicionaram contra o traje.

Por meio de nota, a APIB afirmou: "Estamos vivendo a maior ofensiva em séculos de nossa história", fazendo menção ao Projeto de Lei 191/20, que está sendo tramitado e tem como objetivo regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas. "O momento é grave e dramático. Querem nos dizimar".

"Causa-nos indignação que uma aliada esteja sendo atacada por se juntar a nós em um protesto. Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes. Fez uso de uma pintura feita por um artista indígena para visibilizar o nosso movimento. Sua construção foi cuidadosa e permanentemente dialógica, compreendendo que a luta indígena é coletiva".

A nota também diz: "É preciso que façamos a discussão sobre apropriação cultural com responsabilidade, diferenciando quem quer se apropriar de fato das nossas culturas, ou ridicularizá-las, daqueles que colocam seu legado artístico e político à disposição da luta". E reforça que Alessandra Negrini é ativista e vem contribuindo com o movimento indígena. Procurada por Universa, Sonia Guajajara não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

A seguir, Avelin Buniacá, socióloga especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça, mulher indígena da etnia Kambiwá, explica seu ponto de vista.

"Não somos fantasia"

"Acredito que, quando uma pessoa utiliza adereços indígenas como fantasia, ela está fazendo com que a gente retroceda décadas de mobilização contra o racismo aos povos indígenas", opina. Para exemplificar, Avelin cita a atual situação das mulheres indígenas no país. "As taxas de suicídio entre elas são altas, bem como os números sobre violência sexual e gravidez na adolescência. Elas estão em vulnerabilidade e precisam ser fortalecidas", aponta.

No seu ponto de vista, pessoas públicas poderiam utilizar a visibilidade fortalecendo as diretrizes já existentes para o grupo. "Existe um documento da ONU Mulheres que fomenta o empoderamento de mulheres indígenas. Ele traz cinco eixos temáticos contra a nossa violação: redução da violência contra mulheres e meninas; empoderamento político; direito à terra e processos de retomada; direito à saúde, educação e segurança; e tradições e diálogos intergeracionais", lista.

Para Avelin, usar trajes típicos não é uma maneira de apoiar à causa. "Nossos trajes e tradições são sagrados. Permitir que sejam banalizados é o mesmo que jogar fora a luta antirracista. Existem mulheres que pagam com a própria vida para proteger suas tradições", argumenta. A socióloga também critica o feminismo. "Que feminismo é esse no qual uma mulher pode se fantasiar de outra, muito mais vulnerável, e tudo bem? Isso passa longe do conceito de sororidade. Muito melhor seria usar a própria imagem para fortalecer eixos temáticos de proteção às mulheres indígenas", diz.

Formas efetivas de ajudar

Quando questionada sobre as formas efetivas que qualquer pessoa pode ter para apoiar as causas do povo indígena, Avelin é categórica. "Estamos na era das redes sociais. Qualquer pessoa pode ajudar sem precisar sair de casa, apenas pela tela do celular. Basta postar e repostar informações e denúncias divulgadas por canais seguros, tais como APIB e ISA", garante. Para a socióloga, defender a causa indígena é uma obrigação de todos. "É lutar pela própria vida, pela existência do mundo. Mas é triste que precisemos usar este argumento, de que a vida na Terra pode acabar, para que sejamos ouvidos. O ideal seria que isso fosse feito pela via da empatia", diz.

Outra medida eficaz está relacionada à educação. "Seria ótimo se professores pudessem convidar indígenas para falar sobre sua cultura, seja em universidades, seja nas escolas públicas ou privadas", pontua. Na sua opinião, a postura antirracista deve ser ensinada desde cedo, para que os valores sejam internalizados. "Dentro de casa, podemos desconstruir falas racistas e que nada tem a ver com a nossa cultura. Os termos 'programa de índio' e 'caciques da política', por exemplo, só nos desmerecem", orienta.

A profissional acrescenta que o suporte à causa indígena não justifica, no entanto, o uso de adereços ou fantasias. "Não podemos cair na lógica da tutela, de que as pessoas de outras etnias estão protegendo seus pequenos amigos, infantilizados ou incapazes. É preciso respeitar as origens", completa.

Debate é importante, mas existem outros mais urgentes

Apesar do respeito à cultura indígena ser um tema relevante, Avelin enxerga outra questão ainda mais urgente de ser debatida: a regulamentação de mineração em terras indígenas. "A procura louca por pedras deve ser colocada na mesa. Desde os tempos coloniais não se sabe exatamente o que é o garimpo. Quem mora nas áreas afetadas entende o seu poder de destruição, mas nunca ouvi falar em seminários ou rodas de debates sobre o assunto. Onde estão os especialistas opinando sobre os reais impacto dele para as nossas vidas e os danos para a comunidade?", questiona.

"Não é simplesmente dizer que vai destruir o território indígena. Precisamos de conversas qualificadas sobre o tema. Se perdermos a condição de viver lá, viremos para a cidade, para nos tornar mão de obra barata? Ou seremos fiscalizados por garimpeiros e grandes empreiteiros? Qualquer uma das opções resultaria em uma exploração da miséria. Não podemos ser escravos no nosso próprio território. A mineração vem trazer a destruição da terra e, consequentemente do ser enquanto indígena, porque um está ligado ao outro", finaliza.