Topo

Quem é Alaíde do Feijão, referência do movimento negro no Pelourinho

Alaíde da Conceição, 70, é um ícone do movimento negro no Pelourinho - Heitor Salatiel
Alaíde da Conceição, 70, é um ícone do movimento negro no Pelourinho Imagem: Heitor Salatiel

Guilherme Soares Dias

Colaboração para Universa

14/02/2020 04h00Atualizada em 19/02/2020 10h14

Todas as terças-feiras em Salvador a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída e administrada pela Irmandade dos Homens Pretos, realiza a terça da benção, em que as missas ganham os sons dos tambores. O evento faz com que o Pelourinho, principal ponto turístico da capital baiana, ganhe uma programação especial. O cantor Gerônimo faz seu tradicional show, os blocos afros, como Olodum e Ilê Aiyê aproveitam para ensaiar e promover encontros. O lugar que todas essas pessoas utilizam para se abastecer de comida é o Restaurante Alaíde do Feijão, chefiado por Alaíde da Conceição, 70 anos.

Nessas ocasiões, o restaurante se transforma, a partir das 18h, numa espécie de centro de encontro do movimento negro. A resenha política foi denominada pelos integrantes de "Bancada do Feijão". Foi nessas reuniões que nasceu o movimento "eu quero ela", que pretende lançar uma candidata negra à prefeitura de Salvador, que apesar ter cerca de 80% de população negra, nunca teve um prefeito negro eleito. Alaíde ouve tudo sentada na sua cadeira em meio ao salão. Ela fala mais pelo seu olhar expressivo do que pelas palavras. Mas, vez ou outra, solta frases pontuais e precisas. Todos param para saber o que a matriarca tem a dizer. "O pessoal sempre se reúne aqui em época de eleição. O movimento é muito importante. Nós pessoas negras, temos que assumir alguma coisa", afirma ela.

O feijão que Alaíde prepara hoje no restaurante foi ensinado pela mãe, Maria das Neves, que tinha um tabuleiro próximo ao Mercado Modelo e Elevador Lacerda. Desde os 15 anos, ela trabalhava com a mãe no tabuleiro, que assumiu há cerca de 40 anos. Em 1993, ela deixou as ruas e se tornou uma das poucas proprietárias negras de um restaurante no Pelourinho. "Temos muitas dificuldades, o racismo nos atinge de várias formas e acho que tem piorado", considera. Pergunto se ela sofre preconceito por ser uma mulher à frente de um negócio e ela pontua: "Por ser mulher e por ser negra".Na última terça (5), ela usava um vestido azul de cetim, turbante colorido e chinelo. Parte do dinheiro recebido dos clientes estava dobrado na mão. Com ele, Alaíde compra café e doce de vendedores que passam em frente ao restaurante.

Mas qual seria o segredo do feijão de Alaíde, que atrai tantos clientes há vários anos? "O tempero. Eu deixo as carnes cozinhando no feijão de um dia para o outro. Isso dá o gosto maior, além disso coloco tempero verde e cominho", conta, dizendo que o carinho com que a comida é preparada também é importante. Por causa da idade, quem cozinha hoje são as três filhas e sobrinhas.

Na parede do restaurante estão fotos de Alaíde com os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, além de cantores como Margareth Menezes, Luiz Melodia e Compadre Washington. Um quadro homenageia a mãe, que lhe ensinou a "temperar o feijão e a agradecer aos amigos". Há ainda uma referência a Omolu, o orixá responsável pela terra, pelo fogo e pela morte, que guia a cozinheira. Na entrada, velas e garrafas pedem proteção para Exu, orixá da comunicação, considerado o guardião das casas.

De domingo a domingo

Alaíde conta que come o próprio feijão quase todos os dias durante todos esses anos — a não ser quando almoça pratos com peixe. O restaurante abre todos os dias e ela costuma dar expediente de domingo a domingo. No carnaval, Alaíde sai nos blocos Olodum e Ilê Aiyê. Os presidentes dos dois blocos Antônio Carlos dos Santos, conhecido como Vovô do Ilê, e João Jorge Rodrigues, frequentam o restaurante. Vovô do Ilê compara o estabelecimento ao Restaurante Silvia, no Harlem em Nova York, que serve polenta e carne de porco e reúne os líderes do movimento negro. "Todo mundo passa por lá. Aqui, Alaíde é fundamento. Ela é um ponto de referência e equilíbrio para o movimento negro, local de encontro que frequento desde a juventude, quando a mãe dela vendia no Mercado Modelo", afirma.

O presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues, frequenta o local há pelo menos 15 anos e almoça por lá de duas a três vezes por semana. Ele classifica o restaurante como um centro cultural afro-brasileiro, de cultura, gastronomia e política. "Ela é uma mãezona. O mural de fotos só mostra esses grandes encontros. É um lugar de passagem e ponte no Pelourinho em que fazemos nossos bate-papos", diz ele.

Sete pessoas, todas da família, trabalham no local. Daniele Conceição, 33 anos, é filha de Alaíde e a ajuda desde os 11 anos. Ela é auxiliar administrativa durante o dia e cozinheira durante a noite. "Faço de tudo. O feijão mulatinho e a feijoada carioca são os que mais saem". Ela diz que é um privilégio participar a vida toda de reuniões do movimento negro e que seria uma "revolução" ter uma prefeita negra na cidade. "Torço para que isso ocorra", diz.

A deputada estadual Olívia Santana (PCdoB), que foi eleita a primeira mulher negra para a Assembleia Legislativa da Bahia na última eleição e que é pré-candidata à prefeitura de Salvador, considera que Alaíde é um símbolo que agrega todo o movimento negro. "Ela tempera esse espaço com a política. Sabe de tudo que acontece no movimento político em Salvador. Ela senta com o Olodum, o Ilê Aiyê, o Unegro. Participa de discussões de como vai ser o carnaval, a distribuição de recursos. Durante a disputa eleitoral presencia os debates de todos os candidatos", afirma. Olívia classifica o lugar como "acolhedor" e lembra que apesar das limitações de saúde, Alaíde se agiganta. "É uma presença afetuosa, alegre, festiva, que conhece profundamente a dor e delícia de ser uma mulher negra", classifica.

Da sua cadeira, a cozinheira toma café com leite e olha com atenção todo mundo que entra. A muleta fica encostada em uma das paredes e quem chega pede a benção à mais velha — uma tradição do candomblé. O restaurante passou por dificuldades financeiras no início da década passada, mas foi abraçado pelo movimento negro, que voltou a frequentar o espaço. A jornalista Wanda Chase, que atuou na TV Bahia, escreveu um texto em 2 de fevereiro de 1995, quando Alaíde foi "expulsa" por uma reforma no centro histórico e deixou o tabuleiro junto ao Elevador Lacerda assumindo um restaurante no Pelourinho.

Wanda descreve que, na rua, desde o desembargador até o gari comiam o feijão — e se apaixonavam pelo tempero, virando fregueses. "Vender comida na rua é uma tradição na Bahia. Mas o Feijão da Alaíde se diferencia dos demais e se tornou ponto de encontro da negritude de Salvador. Época de carnaval, por exemplo, quem quisesse saber as primeiras novidades dos blocos, com certeza iria obter a resposta no ponto de Alaíde", diz no texto que ocupa um quadro na parede do restaurante. A jornalista, uma das primeiras negras a aturarem na Globo local, conclui dizendo que "Alaíde mudou para um lugar melhor e maior, onde a gente vai poder olhar para a saudosa (escritora) Lélia Gonzales, onde a gente vai poder abrigar mais gente para discutir questões de interesse da negritude, sonhar com dias melhores, sorrir e cantar".

Alaíde do Feijão fica na Rua das Laranjeiras, 26 e funciona todos os dias das 11h30 às 22h.