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Escrevente é a primeira mulher trans no Tribunal de Justiça de Praia Grande

Carla de Santana é escrevente da 2ª Vara Criminal da Comarca de Praia Grande (SP) - Arquivo Pessoal
Carla de Santana é escrevente da 2ª Vara Criminal da Comarca de Praia Grande (SP) Imagem: Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para Universa, em Santos (SP)

29/01/2020 20h00

Quem conversa com Carla de Santana, escrevente da 2ª Vara Criminal da Comarca de Praia Grande, litoral de São Paulo, não imagina a carga de sofrimento que ela enfrentou. Meses após ter fugido de uma clínica de reabilitação, onde teria sido internada compulsoriamente pela família, decidiu que sua vida mudaria a partir desta semana, quando é comemorada a Visibilidade Trans. Anteontem, advogados, juízes e colegas que trabalham no Tribunal de Justiça da cidade passaram a conhecê-la e a chamá-la por seu nome social.

"Sofri muito até chegar a este momento, poder assumir quem realmente sou", diz a escrevente, que afirma ter se surpreendido com a reação dos colegas e da chefia. "Desde a semana passada, venho avisando a todos que eu passaria a assumir de uma vez por todas quem eu realmente sou. Agora quem vai assumir as rédeas da minha vida será a Carla."

A escrevente, que já foi casada quatro vezes e tem duas filhas de seu último relacionamento com uma professora universitária, tem nove irmãos e hoje mora com a mãe em uma casa alugada na Praia Grande. Desde pequena, usava secretamente as roupas das irmãs, mas por conta de sua família ser formada por "cristãos radicais", como ela mesma descreve, escondia sua identidade de gênero. E foi crescendo, aos olhos da família, como um "menino".

E assim foi até que, em 2014, após a morte de um enteado de seu terceiro casamento, entrou em depressão profunda e passou a beber compulsivamente. Separou-se e foi morar só em uma casa alugada — até que em 2017 o transtorno depressivo atingiu o seu ápice. Foi quando decidiu aderir a um acompanhamento médico e psicológico para se livrar da bebida e da depressão. "Nos meses que se seguiram ao tratamento, melhorei muito. Parei de beber e já começava a me ambientar no Tribunal de Justiça da Praia Grande, para onde havia solicitado transferência".

Internação em clínica

Em janeiro de 2019, porém, teria início, segundo suas próprias palavras, "a pior fase" de sua vida. Após discutir com a família por motivos "corriqueiros", decidiu acompanhar alguns amigos até uma chácara no interior de São Paulo para comemorar o Réveillon. "Não voltei a beber, só tinha que sair de casa, já não aguentava mais a pressão dos meus irmãos. Mas mantive a sobriedade o tempo todo. Quando voltei, meus irmãos já estavam me esperando em casa e me agrediram e me xingaram muito. Depois me jogaram no chão do quintal da minha própria casa, me imobilizaram e chamaram a polícia. Eu então expliquei aos policiais o que estava acontecendo e eles obrigaram meus irmãos a me soltar e deixarem a casa."

Certa de que o drama teria acabado naquele momento, Carla foi acordada horas depois, no meio da noite, por "desconhecidos" que teriam invadido a sua casa. "Eles me espancaram muito, me enrolaram num tapete e me levaram para um carro. Quando me soltaram, eu já estava numa espécie de chácara, que é onde funciona uma clínica de recuperação para viciados em drogas. Eu fui levada a uma sala, estava de unhas pintadas, usando calcinha e aqueles estranhos começaram a tirar sarro de mim e me bateram. Depois me deram um copo do que eles chamam de 'shake', que é um coquetel feito com restos de calmantes e outros remédios. Um 'sossega leão' que me tirou de órbita. Depois disso lembro que acordei num quarto, sozinha, isolada", lembra.

Carla conta que, horas depois de despertar no quarto, ela foi levada novamente para uma sala de atendimento, onde colocaram em sua frente um documento, garantindo que ela estaria ali voluntariamente — e não contra a própria vontade — para que assinasse. Como se negou a fazê-lo, passou a ser espancada pelos monitores até que, num dado momento, entendeu que para sobreviver naquele local, teria que "dançar conforme a música".

"Assinei o documento após tomar muitos socos e chutes. Fazer o quê? Não tinha como lutar com aquela gente. Sem contar que não são funcionários contratados. A maioria dos monitores é composta pelos próprios pacientes, que trabalham em troca da internação. Ninguém ali tem a menor condição de tratar alguém. Mas acabei cedendo."

A partir dali, garante Carla, sua "hospedagem" na clínica tornou-se um verdadeiro inferno. Era obrigada a assistir vídeos de música evangélica, a orar e implorar por perdão a Jesus. "São evangélicos que tocam aquela clínica. Nada contra os evangélicos, mas depois que passei pelo que passei, hoje já até duvido da existência de Deus. Que Deus cruel permitiria àquelas pessoas fazerem o que fizeram comigo? Eles diziam que iriam provar para mim que cura gay existia, sim. Monitoravam minhas ligações, as visitas que recebia semanalmente. Enquanto isso, enquanto eu sofria nas mãos daquela gente, minhas irmãs e meus irmãos entravam na Justiça, com um processo de intervenção, para terem acesso aos meus vencimentos do Tribunal de Justiça. No final das contas, quem pagou pela internação fui eu. Graças aos meus irmãos, acabei pagando, mesmo sem saber, aos meus algozes."

Em março, segundo Carla, seus familiares contrataram um médico — que não seria psicólogo ou psiquiatra — para fornecer um laudo de alcoolismo e transtorno de personalidade, o que garantiria sua permanência na clínica. Naquele momento, "percebendo a armadilha", decidiu que iria fugir do centro de recuperação, o que acabou fazendo no mês de abril. Quando chegou à sua casa, descobriu que ela havia sido entregue aos proprietários; e seus móveis e pertences tinham sido levados por sua família. Com uma pequena reserva de dinheiro que havia sobrado em sua conta, Carla alugou um barraco em Itanhaém, onde ficou escondida por um tempo. Somente em junho, dois meses após a internação, decidiu procurar a mãe, que mora na Praia Grande.

"Ela não sabia de nada, tadinha. Quando ela me ligava, eu dizia que estava tudo bem, para não deixar ela ainda mais desesperada. Moro com ela, ela me aceita, me dá muito apoio. Hoje fujo dos meus irmãos. Por muito tempo sentia medo de que eles pudessem fazer tudo de novo. Por isso que decidi assumir minha identidade de uma vez por todas."

E foi o que aconteceu. Hoje, Dia Nacional da Visibilidade Trans, em uma conversa com sua chefia no Tribunal de Justiça, Carla foi informada que seus superiores já estariam providenciando a mudança do nome no crachá. Para a ex-esposa e as filhas gêmeas, hoje com 11 anos, ela acredita que a mudança também será uma questão de tempo.

"Tão logo minhas filhas cresçam um pouco mais, amadureçam um pouco mais, elas poderão conhecer o meu verdadeiro 'eu'. Uma pessoa que ama como qualquer outra, sofre como qualquer outra. E que se chama Carla de Santana".