Topo

Rosana Pinheiro-Machado: "A esquerda é permeada por machismo"

A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado lança "Amanhã Vai Ser Maior", em que analisa a política brasileira desde as manifestações de 2013 - Divulgação
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado lança "Amanhã Vai Ser Maior", em que analisa a política brasileira desde as manifestações de 2013 Imagem: Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

13/01/2020 04h00

Ódio, substantivo masculino. Esperança, substantivo feminino. Os títulos de dois capítulos do livro recém-lançado da antropóloga e cientista social Rosana Pinheiro-Machado, "Amanhã Vai ser Maior" (editora Planeta), mostram, já de cara, de onde virão, na opinião da autora, as saídas para a tormenta política vivida atualmente: dos movimentos das mulheres. Principalmente daí, mas não só: ela cita, além do feminismo, o movimento LGBT e o movimento negro, que passaram a proliferar em coletivos e na internet depois das manifestações de junho de 2013. São o que ela chama de Brasil insurgente.

Rosana, professora de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Bath, no Reino Unido, e colunista do The Intercept Brasil, faz, no livro, uma análise política e social do país, partindo das jornadas de junho de 2013, e dos grupos que foram se desenhando a partir de então, até chegar à eleição do presidente Jair Bolsonaro.

"O que a gente tem visto é esse acordar em diversas classes e cantos do país, e essa potência de que podemos transformar a sociedade. Para mim é a principal conquista", afirma.

Em entrevista a Universa, Rosana fala sobre movimentos sociais, política, reações conservadoras aos avanços progressistas e machismo. "Os ataques que sofro da esquerda, quando se fala de gênero, são os mesmos da direita."


Em seu livro, você afirma que a extrema-direita teve uma vitória com a eleição de Jair Bolsonaro, mas que o feminismo também venceu. Como é possível que movimentos tão antagônicos tenham ganhado uma disputa ideológica ao mesmo tempo?

A eleição de Bolsonaro é a vitória da ordem patriarcal, tanto que o símbolo máximo da campanha foi um objeto fálico: a arma. Mas, nos últimos anos, houve também uma proliferação da lógica feminista em todas as classes sociais, no país todo. São muitos feminismos. Não sei se dá para falar em unidade, mas há o entendimento de que a luta das mulheres pode transformar a sociedade. Nas minhas pesquisas de campo vi que as meninas negras da periferia que tiveram contato com o feminismo rompiam com estruturas patriarcais. Na política, há um padrão histórico de homens influenciarem votos das mulheres da família, mas essas meninas influenciaram, pela primeira vez, o voto da mãe. Estão dizendo que vão votar em quem quiserem e que não são só os homens que têm protagonismo. É uma geração que diz que não vai lavar chão nem ser empregada doméstica e vai procurar trabalho técnico.

Há uma queda de braço entre feminismo e conservadorismo?

Os movimentos coexistem e são forças antagônicas. O que temos visto, desde as manifestações de junho de 2013, é um processo de ação e reação. Todo o Brasil insurgente, não só do feminismo, mas também do movimento LGBT e do movimento negro, que veio depois de 2013, começou a se proliferar em coletivos e na internet. Com isso, tem uma reação, que chamamos de "backlash". Há a promoção de uma ordem moral, uma tentativa de controlar universidades, escolas, disputar conselhos tutelares, exigir uma certa moral do que se espera da mulher e controlar seus direitos reprodutivos. Gosto muito do exemplo da censura da Bienal do Rio, que foi brutal, medieval [em setembro, a prefeitura do Rio de Janeiro determinou que fossem retiradas das prateleiras as edições de um livro de quadrinhos com dois rapazes se beijando]. Depois da censura, veio alguém superrico, o Felipe Neto [youtuber], comprando todos os livros para distribuir, e apareceram milhares de LGBTs gritando: "Não vai ter censura". É isso que vivemos hoje.

Qual o grande acerto do feminismo atual?

O uso da internet, pois é possível criar discursos para todas as mulheres em sua diversidade. Há mulheres feministas liberais, de elite, pensando em representatividade em cargos de poder, mas há também meninas de periferia lutando pela vida das mulheres negras. Há toda uma linguagem de proteção e de luta que chega a todas as camadas sociais. E com isso vem o processo das meninas se rebelando, dizendo para as mães que não é normal levar tapa do marido, que não é normal ele chegar bêbado.

A internet também é usada por mulheres para denunciar, publicamente, assédios, abuso e violência.

Sim, o feminismo de internet partiu para um processo de denúncia online. Mas acho que podemos ter errado a mão nessa forma de denuncismo, acusatório. Por outro lado, compreendo esse processo porque as instituições sempre foram machistas e fechadas. Se eu denunciasse um professor abusador na universidade, a instituição iria protegê-lo. Então a saída seria ir direto para a internet mesmo. Mas é difícil porque vai acusar, e a internet vai dar o veredito sem um julgamento. Denunciar é uma maneira de romper com o opressor, mas acho que a gente aprendeu muito nesse processo. Entendemos que é preciso estar mais protegidas legalmente antes de ir para as redes sociais. Ir com mais provas e com uma rede de mulheres por trás para ajudar.

Qual é a diferença entre os machismos praticados pela esquerda e pela direita?

A esquerda é permeada por machismo, procura lideranças masculinas, espera o eterno retorno do pai, na linguagem psicanalítica. Existe essa ideia do intelectual, do revolucionário, e é sempre um homem. Os ataques que sofro da esquerda, quando se fala de gênero, são os mesmos que os da direita. Usam os mesmos estereótipos e adjetivos para me criticar. Escrevem professora entre aspas, tentam colocar apelidos para criar uma figura caricata ou sobre meu físico. Mas, fora isso, a diferença é brutal. Eu consigo falar e ser ouvida na esquerda e, quando se reconhece o machismo, há espaço para lutar contra. Na extrema-direita, o discurso é de ódio contra mulheres mesmo, ainda que as bolsonaristas discordem. Há os "incels", que pregam a morte de mulheres [o termo vem de "involuntary celibates", ou celibatários involuntários, que não conseguem ter relações afetivas e sexuais e atacam mulheres por isso], e os masculinistas [homens fundamentalmente misóginos e que se identificam com valores neonazistas]. São dois grupos empoderados na extrema-direita.

Em que o feminismo brasileiro precisa avançar?

Há tudo a fazer, principalmente em relação a mulheres negras. Elas ainda estão na base da pirâmide do emprego, sofrem mais violência. Também há muito a fazer em relação à transfobia. Mas há muita consciência sendo produzida, tem mais pessoas denunciando violências. Acredito que temos conseguido chegar às pessoas como nenhum outro movimento, inclusive o das esquerdas, que não consegue ter o apelo que o feminismo tem. Se mulheres brancas não pensarem na vida das mulheres periféricas, é um feminismo parcial, não é completo.

Recentemente, o ex-presidente Lula afirmou que as jornadas de junho de 2013 tiveram influência dos Estados Unidos e foram feitas como parte do "golpe contra o PT". Como uma pesquisadora que se debruçou sobre as manifestações, como avalia essas declarações?

Extremamente populistas. Entra na lógica do nós contra eles e não para pra pensar na complexidade do que aconteceu. Não estou dizendo que não tenha tido influência externa, mas não foi a causa. A causa foi um Brasil que, em um momento de maturidade democrática, foi para as ruas pedir mais. Não acho que o Lula acredite que junho de 2013 tenha uma causa única, ele é um homem inteligente.

Qual poderia ser a fagulha para uma nova onda de insurgência popular, na mesma linha do que aconteceu em 2013?

O que está para estourar é a precarização do trabalho em aplicativos de transporte. Os trabalhadores estão no limite. No que diz respeito às mulheres, um dos pontos mais fortes é a questão do aborto, caso surja um projeto de lei como o que deu origem à primavera feminista em 2015 [termo usado para se referir às manifestações de mulheres nas ruas e nas redes sociais, que pediam o fim da violência de gênero e protestavam contra a retirada de direitos, como o projeto de lei que dificultava o aborto legal em caso de estupro]. A questão do aborto é interessante, vai ter muita coisa acontecendo na Argentina [o novo presidente, Alberto Fernández já disse ser a favor da legalização], a tendência é que a luta pelo direito ao aborto vá mobilizar mulheres na América Latina. Mas uma fagulha é isso: pode vir de um lugar que não conseguimos ver.

Quem você citaria como importantes lideranças femininas atuais?

A Márcia Barbosa, professora de física na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é um dos maiores nomes da luta por mais espaço para a mulher na ciência. Uma pessoa que é um símbolo de resistência é a Debora Diniz [professora da Universidade de Brasília, pesquisadora e ativista em temas como aborto e direitos reprodutivos]. Citaria também a Lola Aronovich [blogueira feminista e professora da Universidade Federal do Ceará] e bancada feminista do PSOL, com as deputadas federais Áurea Carolina, Talíria Petrone, Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim. E, acima de tudo, Marielle Franco, uma mulher negra, jovem e de esquerda assassinada no mesmo ano em que um homem branco e velho ganhou as eleições. Ela é nosso símbolo maior.

O crescimento de grupos religiosos moralistas dentro do governo, que tentam cercear a liberdade das mulheres, pode avançar a ponto de retirar direitos?

Essa é uma questão que ainda precisamos observar. O avanço dos evangélicos conservadores é indiscutível, é a formação de um exército religioso mesmo. Vai além das igrejas: está nas escolas, nos conselhos tutelares. É um projeto de capilarização que disputa narrativas. Por outro lado, tem uma nova geração de jovens que vão à igreja, mas estão vivendo no século 21, não são 100% cooptáveis.