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Harvey Weinstein: entenda o julgamento do produtor que inspirou o #MeToo

Harvey Weinstein chega à corte dos EUA para se declarar inocente da acusação de estupro - Eduardo Munoz Alvarez/AFP
Harvey Weinstein chega à corte dos EUA para se declarar inocente da acusação de estupro Imagem: Eduardo Munoz Alvarez/AFP

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

08/01/2020 04h00

"As pessoas ao redor do mundo estarão assistindo a esse julgamento e muitas delas estão esperando e ansiando que a justiça seja feita."

O comentário da jornalista Megan Twohey em um telejornal, nessa segunda-feira (6), nos Estados Unidos, dá um pouco a tônica do que esperar desse que já é considerado o julgamento do ano —e não só para os americanos.

O réu a que Megan se refere é o produtor de Hollywood Harvey Weinstein, 67, personagem central de uma reportagem que ela e a também repórter Jodi Kantor publicaram em 5 de outubro de 2017 no jornal The New York Times.

A reportagem se revelou uma extensa investigação sobre a má conduta sexual de Weinstein e se somaria a outra, da revista The New Yorker, com um efeito devastador na carreira, no casamento, nas finanças, e, principalmente, na reputação do produtor.

Chamado no passado de "Deus" por celebridades do peso de Meryl Streep, Weinstein se tornou um pária, a ponto de figurar na mais recente edição do Globo de Ouro não mais como convidado ilustre, como em anos anteriores, mas como motivo de chacota em tiradas ácidas do apresentador Ricky Gervais, o sarcástico mestre de cerimônias do evento.

Embora o escândalo noticiado pela imprensa americana há mais de dois anos abranja mais de 80 mulheres que afirmam ter sido vítimas do produtor, o processo pelo qual ele começou a ser julgado nesta semana, em Nova York, trata de apenas dois casos -dois estupros.

A reportagem de Universa compilou, a seguir, alguns pontos fundamentais para entender os desdobramentos de um caso que parece transcender a figura de Weinstein: ele traz ao debate questões como a união e a sororidade entre mulheres, cutuca a ferida da histórica disparidade salarial de gênero —da qual Hollywood não está imune— e dá novo fôlego à luta feminista mundo afora.

Atrizes, modelos e funcionárias: as principais envolvidas

No fim de 2017, após o New York Times publicar as primeiras acusações apresentadas contra Weinstein, dezenas de atrizes, assistentes administrativas, modelos e outras mulheres que passaram pelas produtoras Miramax e The Weinstein Company disseram ter sido vítimas do produtor. Em função disso, e diante da repercussão global do caso, autoridades policiais em Nova York, Los Angeles e Londres abriram investigações criminais para apurar os casos.

Passados dois meses de o escândalo começar a ser revelado, promotores acusaram Weinstein, criminalmente, de ter forçado a assistente de produção Mimi Haleyi a fazer sexo oral nele em 2006. Eles também o acusaram de ter estuprado uma segunda mulher, ainda anônima e cujo relato não é de conhecimento público, em 2013. Com isso, apontam que o produtor praticaria agressão sexual predatória -ou seja, teria cometido crimes sexuais graves contra mais de uma pessoa, o que o coloca na berlinda para uma sentença de prisão perpétua.

Embora o processo englobe apenas duas vítimas, várias das mulheres que o acusam podem ser chamadas pela promotoria a depor no julgamento como testemunhas -em uma tentativa de se demonstrar um padrão de assédio cometido por Weinstein, uma vez que a maior parte de outras alegações feitas contra ele já prescreveram, estão fora da jurisdição de Nova York ou envolvem comportamento abusivo, mas não criminal. Parte das acusadoras também não quis participar do julgamento em função do ônus pessoal desse tipo de exposição.

Uma das testemunhas que deve depor é a atriz Annabella Sciorra, de filmes como "Febre da Selva", que afirma ter sido estuprada por Weinstein, em Manhattan, em 1993. A americana foi uma das fontes da reportagem do New York Times.

Escândalo globalizou o debate sobre assédio

As acusações contra o ex-magnata da indústria cinematográfica estimularam a criação do movimento #MeToo, por meio do qual milhares de mulheres acusaram publicamente de assédio ou agressão sexual homens influentes nas mais diversas esferas sociais -nos negócios, na política, na mídia ou no entretenimento.

Entre as atrizes de Hollywood que relataram má conduta sexual por parte do produtor estão Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow e Rose McGowan.

Mas um dos relatos de maior repercussão foi o da atriz e produtora mexicana Salma Kayek, 53. Em um chocante artigo para o NYT, publicado em dezembro de 2017 e intitulado "Harvey Weinstein é meu monstro também", ela acusou o produtor de assediá-la sexualmente e ameaçá-la antes e durante as filmagens de "Frida" (2002), que rendeu a ela a indicação ao Oscar de melhor atriz.

"As táticas de persuasão dele iam de falar coisas doces a fazer promessas, até uma vez que, em um ataque de raiva, ele disse as palavras mais assustadoras: 'Vou te matar, não ache que eu não sou capaz'", narrou Hayek no artigo.

Embora admitisse no texto ter demorado a compartilhar sua história, a atriz disse ter mudado de ideia "quando tantas mulheres tomaram a iniciativa de descrever o que Harvey fez com elas", em referência ao #MeToo.

"Tive que enfrentar minha covardia e aceitar humildemente que minha história, embora importante para mim, é apenas uma gota em um oceano de confusão e dor", escreveu.

Uma reputação cada vez mais corroída

Weinstein sempre negou as acusações de abuso e mesmo as de estupro imputadas a ele pelas dezenas de mulheres. No caso das duas que o acusam formalmente de estupro e agressão sexual, no atual julgamento, ele tem afirmado que todo e qualquer encontro sexual foi consensual.

Sobre o relato de Salma Hayek, à época, emitiu uma nota em que também as refutou, ainda que admitisse "atritos criativos" durante a produção de "Frida".

"As acusações sexuais de Salma não são precisas e outras pessoas que testemunharam os eventos têm uma versão diferente do que aconteceu", definiu.

As alegações, no entanto, colidem com a própria realidade do produtor: em novembro de 2017, um mês após eclodir o escândalo, ele se internou em um centro de reabilitação para tratar a dependência de sexo.

Na sequência, a segunda esposa, a designer de moda britânica Georgina Chapman, com quem teve dois de seus cinco filhos, divorciou-se dele. A etapa seguinte seria a expulsão da Academia de Cinema dos Estados Unidos e da própria empresa, a The Weinstein Company (TWC).

E uma fortuna que cai

Weinstein responde o processo em liberdade após pagar fiança de US$ 1 milhão. Em dezembro passado, porém, o juiz do caso, James Burke, aumentou a fiança para US$ 5 milhões ante a constatação de que o réu fizera mau uso da tornozeleira eletrônica.

Uma reportagem recente do New York Times mostrou que, além da reputação, também as finanças do produtor foram abaladas após a onda de denúncias. A fortuna pessoal, no passado recente avaliada entre US$ 240 mi e US$ 300 mi, mingua rapidamente após ele cair em desgraça. Além do mais, os promotores do caso asseguram que ele vendeu seis propriedades por um montante total de US$ 60 mi, nos últimos dois anos, para arcar com os custos legais e financiar suas duas ex-mulheres.

Ano passado, a TWC declarou falência e foi comprada pelo fundo de investimentos Lantern.

Em dezembro, Weinstein chegou a um acordo de US$ 25 mi com mais de 30 atrizes e ex-funcionárias que o processaram. A conta ficará com sua antiga empresa e com empresas de seguros.

Feminismo ganha novo fôlego com #MeToo e Time's Up

Em Hollywood, nos Estados Unidos e pelo mundo, o escândalo sexual envolvendo o produtor viu o movimento feminista ganhar novo fôlego com diferentes gerações de mulheres debatendo a empatia entre as mulheres, silenciamento e consentimento.

Meryl Streep, por exemplo, que chamara Weinstein carinhosamente de "Deus" em 2011, em meio a uma festejada repercussão sobre seu desempenho em "A Dama de Ferro" -o produtor seria seu maior lobista ao Oscar de melhor atriz pelo papel -, não se furtou a classificar a situação dele, depois, como "vergonhosa".

Ativista proeminente pela equidade de gênero em Hollywood, Meryl acabou se somando a várias centenas de mulheres na indústria do entretenimento em uma iniciativa denominada Time's Up (Chegou a hora), voltada a combater o assédio sexual e a desigualdade de gênero em ambientes de trabalho.

A ação, um desdobramento do #MeToo, teve a criação anunciada em 1º de janeiro de 2018, após a ONG Alianza Nacional de Campesinas escrever para a revista Time uma carta de solidariedade às mulheres de Hollywood envolvidas nas acusações de abuso sexual contra Weinstein. A carta descrevia experiências de agressão e assédio entre trabalhadoras do campo e se dizia escrita em nome das aproximadamente 700.000 trabalhadoras rurais dos Estados Unidos.

O Time's Up anunciou ainda a criação de um fundo de defesa legal que promete dar assistência às vítimas, administrado pelo National Women's Law Center.

Elogios e avanços à parte, no entanto, nos últimos meses o #MeToo colecionou uma mescla de críticas, feitas por atrizes e atores que acham o movimento sexista ou segregador demais, e de apoios, face a novas denúncias de má conduta sexual na indústria do entretenimento.

Julgamento deve durar mais de dois meses

Previsto para durar mais de dois meses, o julgamento de Weinstein em Nova York começou nessa segunda-feira (6) com as instruções do juiz na Suprema Corte estadual de Manhattan, James Burke, e seguem com o processo de seleção do júri, previsto para durar duas semanas.

Uma das principais linhas da defesa será a de que as mulheres que acusam Weinstein teriam se envolvido sexualmente com ele de forma consensual.

A defesa do ex-magnata destaca provas de que várias delas teriam se relacionado "romanticamente" com ele mesmo após os supostos abusos, mas várias das alegadas vítimas afirmaram que o contato posterior se daria pelo poder dele como produtor.

Em entrevistas, a advogada de Weinstein, Donna Rotunno, rebateu: "São mulheres que passaram tempo em períodos longos, e acho que temos evidências para indicar que o tempo que passaram foi positivo e favorável".

Ao canal CBS, Rotunno disse que o movimento #MeToo "deixa o tribunal da opinião pública tomar conta da narrativa" e "põe a pessoa numa posição em que é privada de seus direitos".

Além disso, a promotoria sofreu alguns contratempos ao longo do processo: além de ser obrigada a desistir de uma acusadora que era fundamental para o processo, o detetive principal foi afastado por alegações de erro de conduta policial.

A expectativa é que o tribunal siga com as galerias cheias de espectadores, do lado de dentro, e com manifestantes, do lado de fora, durante todo o processo. O resultado todo julgamento é considerado por especialistas como imprevisível.

Futuro de Weinstein: no cinema ou na cadeia, ele deve seguir como vilão

O julgamento parece estar longe de representar uma saída definitiva para Weinstein: se for condenado, pode ficar na cadeia pelo resto da vida. Se for inocentado ou condenado a uma pena mais leve, poderá voltar ao banco dos réus em novos processos.

Na segunda (6), Weinstein foi acusado novamente, agora por promotores de Los Angeles, de cometer atos de violência sexual contra duas mulheres. A procuradora Jackie Lacey atesta que o produtor "usou seu poder e influência para ter contato com as vítimas e em seguida cometer os crimes", que teriam acontecido em fevereiro de 2013. Segundo Lacey, o produtor entrou sem permissão no quarto de hotel da primeira vítima. Na noite seguinte, prossegue a procuradora, ele cometeu mais uma agressão sexual contra outra mulher.

Fora da esfera judicial, o caso também deve render na ficção: um longa de suspense baseado no escândalo, "The Assistant", tem estreia prevista para o final deste mês nos Estados Unidos. E Brad Pitt assina a produção de outro filme a respeito, ainda sem data de lançamento. Pitt ameaçou Weinstein em 1995 caso ele não parasse de assediar sexualmente sua namorada na época, Gwyneth Paltrow - posteriormente, uma das vozes do #MeToo.

Weinstein segue inspirando Hollywood, mas, agora, no papel de vilão do filme.