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Julia Quinn: livros venderam 1 mi de exemplares e virarão série da Netflix

Julia Quinn: "Jane Austen nos fez perceber que toda mulher é inteligente" - Joe Rettberg/Divulgação
Julia Quinn: "Jane Austen nos fez perceber que toda mulher é inteligente" Imagem: Joe Rettberg/Divulgação

Heloísa Noronha

Colaboração com Universa

04/01/2020 04h00

"O Duque e Eu", "O Visconde que me Amava", "Uma Dama Fora dos Padrões", "Um Cavalheiro a Bordo"...

Em grandes redes de livrarias, títulos como esses ocupam ilhas inteiras e são fáceis de identificar: as capas costumam ostentar imagens de mulheres em trajes antigos — vestidos delicados, luvas e chapéus — e o layout invariavelmente conta com letras rebuscadas e tons suaves. Assinados por autoras contemporâneas, os romances de época são a tendência literária da vez, dividindo as atenções das consumidoras com obras de temática feminista e enredos eróticos que seguem surfando no sucesso de "Cinquenta Tons de Cinza".

A maior expoente desse movimento é Julia Quinn, pseudônimo da norte-americana Julie Pottinger, de 49 anos, que soma a impressionante marca de 10 milhões de livros vendidos ao redor do mundo — o Brasil, aliás, é o primeiro país com maior vendagem (1,2 milhão de exemplares) da autora após as nações de língua inglesa.

Considerada a "Jane Austen do século XXI", Julia se diz feminista (ver entrevista a seguir) e caiu nas graças até da poderosa Shonda Rhimes, criadora de seriados consagrados como "Scandal" e "Grey's Anatomy", que está produzindo uma série para a Netflix baseada na saga "Os Bridgertons", composta por nove livros.

Tessa Dare, Lisa Kleypas e Diana Gabaldon (da série "Outlander"), além das brasileiras Marina Carvalho e Carina Rissi, são outras escritoras que têm garantido a diversão de quem aprecia romances de época, contigente que não para de crescer e que parece distante de demonstrar sinais de cansaço. "A aposta do mercado se mantém porque há uma demanda que segue vigorosa, o que nos levou a dedicar um espaço maior a livros desse gênero nas lojas. São histórias que falam com diversos públicos, com linguagem simples e fluida, e que transitam entre o estilo clássico e o contemporâneo", comenta Deric Guilhen, diretor comercial e de marketing da Saraiva. Na lista dos dez romances de época mais vendidos pela rede nos últimos três anos, as cinco primeiras posições são ocupadas por obras de Julia Quinn.

De acordo com Marina Zveibil, gerente de comunicação da Amazon Brasil, na ferramenta de autopublicação KDP (Kindle Direct Publishing) da Amazon os romances de época também agradam bastante, especialmente os de Diane Bergher, autora da série "Belle Époque", Julie Lopo ("Damas da Sociedade"), Silvana Barbosa ("Libertinos"), Jéssica Macedo ("Herdeiras da Magia") e Jhonatas Nilson ("Os Sonhos de uma Princesa"). "Num momento em que nem todas as editoras apostavam nesse gênero, o KDP abriu portas e permitiu que autores chegassem a leitores que tinham apetite por essa temática. Os romances históricos estão despontando nesse ciclo natural de oferta e demanda", diz.

Na opinião de Marina, não se trata de um paradoxo o fato de os romances de época e os livros com temas feministas disputarem a atenção do público. "Os romances de época atuais estão sendo escritos por mulheres e trazem mulheres como protagonistas lidando com temas atuais, apesar de as tramas se passarem em outros momentos. Um romance histórico pode conter motes feministas e levantar discussões inerentes ao feminismo e à sexualidade, da mesma forma que os livros eróticos. Há muitos que, tendo o erotismo como pano de fundo, levantam questões importantes, como discussões sobre o machismo estrutural", comenta.

Nos passos de Jane Austen

Autora de clássicos como "Razão e Sensibilidade" (1811), "Orgulho e Preconceito" (1813) e "Emma" (1815), a inglesa Jane Austen (1775-1817) é a referência-mor das novas escritoras "de época". Porém, mais do que da ácida crítica social de costumes que permeia seus livros, é dos encontros e desencontros e da tensão sexual entre homens e mulheres que vêm boa parte da inspiração.

Especialista na obra da escritora, Maria Clara Biajoli, professora de Literatura Inglesa da Unifal (Universidade Federal de Alfenas), em Minas Gerais, afirma que após sua morte Jane Austen caiu em relativo esquecimento, mas quem a valorizava enxergava principalmente a sátira e a ironia, os pontos mais fortes na sua escrita. Segundo Maria Clara, a Jane Austen "romântica" que escreveu "histórias de amor" é uma leitura do século XX. "Trata-se do resultado de uma longa tradição de embalar a obra da autora em um papel de embrulho cor-de-rosa e vender para as moças. Uma de suas fontes é o primeiro filme baseado em 'Orgulho e Preconceito', de 1940, que transforma o livro em uma comediazinha boba", conta a docente, que em 2017 apresentou a tese de doutorado "Orgulho e Preconceito no Século XXI: a Austenmania e a Fantasia do Final Feliz" no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

A maior parte das pessoas descobre Jane Austen através da TV ou do cinema e sempre vai ler a obra com um filtro mais romântico. Porém, de acordo com Maria Clara, outra influência importante para chegar ao formato das obras atuais é a escritora inglesa Georgette Heyer (1902-1974), que inventou o subgênero de romance apelidado de "regencies", que conta histórias de amor na Inglaterra regencial, normalmente entre as altas classes da aristocracia e nobreza. "Austen nunca mexeu com essas classes, não era o escopo dela, mas para aumentar o grau de emoção, de "Cinderela e príncipe encantado", os heróis começaram a ficar cada vez mais nobres. E como Heyer declarava abertamente que a inspiração dela era Austen, podemos dizer que o seu sucesso foi como uma camada sobre a obra de Austen", explica. Assim, sob a ótica de Maria Clara, Julia Quinn nada mais é do que a Georgette Heyer do século XXI. Ela "surfa" no sucesso de um subgênero que foi criado há quase cem anos. Não é nenhuma novidade, a não ser pela quantidade de sexo que ela coloca em suas páginas para seguir uma demanda atual iniciada com "Cinquenta Tons de Cinza".

O professor Bernardo Bueno, coordenador do Curso de Escrita Criativa da Escola de Humanidades da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), compartilha a mesma visão. "Quanto mais se lê, mais se gosta de ler, sempre conhecendo coisas novas, seja literatura contemporânea, de época, romântica ou de qualquer outro gênero. O que não deve existir é o preconceito, achar que um tipo de literatura é inferior a outro. Há espaço para todos os gêneros, estilos, temas e tramas", fala.

Viés feminista: sim ou não?

Para Adriana Sales Zardini, doutora em Estudos Linguísticos na Faculdade de Letras da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e presidente da Jane Austen Sociedade do Brasil desde 2009, não dá para negar que autoras contemporâneas como Julia Quinn podem levar o público a se interessar pelos romances de época do tipo "raiz". "Essa é uma contribuição maravilhosa. E esse não é um movimento pequeno, há uma procura enorme pelos clássicos, e as editoras já perceberam isso há alguns anos, basta observarmos quantas edições de Jane Austen e das Irmãs Brontë tínhamos no mercado brasileiro até o final da década de 1990 e quantas edições temos hoje em dia. Isso tudo sem levar em consideração toda a dedicação das editoras em produzirem capas mais atraentes e diversificadas, atraindo cada vez mais um público fiel", declara.

Sobre a impressão de que esses romances "água com açúcar" representam uma contradição frente aos movimentos feministas atuais, Adriana pondera que, no Brasil, o termo "feminismo" está muito associado à revolução da década de 1960 e com as passeatas e o ativismo nas redes sociais atuais.

"Porém, temos que lembrar que escritoras com temática feminista já existiam na época de Jane Austen, como é o caso de Mary Wollstonecraft que escreveu, entre outros livros, o clássico 'Reivindicação dos Direitos da Mulher' em 1792. O que muitos leitores brasileiros podem não saber é que Austen é considerada uma escritora protofeminista, já que 'denunciava' a vida injusta das mulheres de sua época, que não tinham acesso à educação formal, não podiam herdar as heranças dos pais, não podiam exercer nenhuma profissão se pertencessem à classe média, caso contrário ofenderiam a família, entre tantos outros exemplos", observa. Adriana ressalta que, no caso de Julia Quinn e suas colegas, as heroínas dos livros não são mocinhas ingênuas, mas garotas emancipadas e que se parecem mais com as mulheres do nosso tempo.

Já Silvio Pereira da Silva, coordenador dos cursos de Letras (licenciatura e bacharelado) da Umesp (Universidade Metodista de São Paulo), pontua que a quarta onda do feminismo tem tudo a ver com o atenção crescente por esse tipo de romance. "Esse interesse pode estar relacionado à tentativa de compreensão do discurso e do universo feminino na literatura, tendo em vista que esses romances tratam de questão históricas, mas também de subjetividades marcadas pelo feminino. No momento, seguem uma linha de valorização de produções marcadas por discussões sobre gênero e literatura", explica.

Trata-se de um pensamento semelhante ao de Godofredo de Oliveira Neto, escritor e professor titular de Literatura Brasileira da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). "A revisitação de protagonistas dos romances citados, obras que exibem com frequência o sentimento e o amor frente à razão sanguinária real ou metafórica masculina, segue a linha de busca de um humanismo passando obrigatoriamente, hoje, pela igualdade de gêneros. É um exercício sedutor reler comportamentos 'de época' com os olhos femininos de 2019. Como a mulher de hoje enfrentaria aquele ambiente preconceituoso?", questiona.

Na visão de Maria Clara Biajoli, porém, é preciso ler nas entrelinhas as mensagens que os romances de época atuais querem transmitir, como a obrigatoriedade do final feliz.

Quando você filtra toda a crítica social e só mostra a história de amor, e é isso que os filmes mostram e o que as pessoas enxergam por consequência, os livros passam a atuar como reforço de um modelo ideal de vida que é absolutamente opressor e inatingível.

"Jane Austen trabalhou dentro do gênero da comédia e usou esse modelo para fazer um retrato destruidor da sociedade dela, mas tratava-se de um retrato 'disfarçado' pelo final feliz. Não pode existir final feliz para uma mulher solteira? Ou sem filhos? Ou gay ou em poliamor? Os romances da Julia Quinn adicionam outra obrigação, a da vida sexual perfeita: agora, além de tudo, as mulheres são obrigadas a terem orgasmos três vezes por dia", critica.

Romances de Julia Quinn - Divulgação - Divulgação
Livros de Julia Quinn: os romances de época são tendência literária da vez
Imagem: Divulgação

"Nos romances, a mulher sempre vence"

Ex-estudante de Medicina da prestigiada Universidade de Yale, Julia Quinn começou a escrever ainda adolescente, após ser criticada pelo pai pela leitura de romances açucarados. Ao informá-lo de que pretendia ela mesma escrever um romance, foi desafiada a mostrar se tinha talento para a coisa. E, aos 13 anos, inventou sua primeira história, nunca publicada. A carreira como médica foi abandonada pela carreira literária, que lhe rendeu um novo nome: Julia, para soar mais adulta que Julie, e Quinn, porque tinha o objetivo de garantir um lugar nas prateleiras das livrarias ao lado de Amanda Quick, autora que sempre admirou.

Em 2015, ela passou férias no Brasil com o marido e o casal de folhos e diz adorar os fãs brasileiros. Em entrevista exclusiva a Universa, Julia fala sobre seu trabalho, feminismo e a expectativa de ver uma obra sua produzida por Shonda Rhimes para a Netflix.

Universa: Em que país o sucesso do seu trabalho surpreendeu você?

Julia: Depois dos Estados Unidos, o Brasil é o país onde eu mais vendi livros e é o lugar onde eu sinto a maior conexão com os leitores. Os fãs brasileiros são os melhores. Todo mundo que conheci é animado com livros e leitura.

Universa: Por que você decidiu ambientar seus livros no passado?

Julia: Sempre gostei de ler livros ambientados na Inglaterra, preferencialmente na época da regência. Então, quando comecei a escrever, para mim fazia todo o sentido escrever histórias que remetiam a esse período.

Universa: Quais livros e escritores fizeram parte de sua formação literária?

Julia: Quando criança, eu era viciada em Victoria Holt (junto com todos os pseudônimos). Também adoro os livros de Eloisa James, Lisa Kleypas, Sarah MacLean e Tessa Dare. Fiquei bastante feliz e emocionada ao saber que eles também estão disponíveis no mercado brasileiro.

Universa: No Brasil, livros com temas feministas compartilham a atenção nas estantes com romances. A que você atribui esse paradoxo?

Julia: Não vejo isso como um paradoxo. Muitos, se não a maioria, dos romances são altamente feministas. Pense nisso: nos romances, a mulher sempre vence.

Universa: Você é feminista? O que é feminismo, na sua opinião?

Julia: Sim, sou e sempre me considerei feminista. Defino o feminismo como uma crença de que homens e mulheres devem ter as mesmas oportunidades na vida e devem ser pagos e respeitados igualmente pelo mesmo trabalho. Eu também acredito que isso significa que carreiras e tipos de lazer que são tradicionalmente considerados "femininos" devem receber maior respeito e também estar abertos aos homens.

Universa: Seus romances conquistaram milhões de leitores em todo o planeta. Você acha que esse sucesso tem a ver com um momento histórico conturbado e que eles funcionam como uma espécie de válvula de escape?

Julia: Romances são populares há décadas, então não tenho tanta certeza de que seu sucesso possa estar conectado a qualquer momento histórico singular. Penso, no entanto, que não importa o que esteja acontecendo no mundo, todos nós ocasionalmente precisamos de uma fuga, e os romances podem fornecer isso. Acredito que muitas pessoas leem romances simplesmente porque gostam de ler sobre alegria, felicidade e amor. Não tem a ver com escapar de nada.

Universa: Nos seus livros, os heróis geralmente são homens que, de certa forma, evoluem pessoalmente depois de se apaixonar por uma mulher. Você acha que isso é possível na vida real?

Julia: Claro. Fico realmente irritada quando as pessoas me perguntam se acho que meus romances estão dando às mulheres expectativas muito altas em relação aos homens. Para mim, é obvio que todas as mulheres devem cultivar grandes expectativas em relação aos homens.

Universa: Você se baseia em pessoas "reais" para desenvolver seus personagens?

Julia: Na verdade, não. Em algum momento sei que isso pode acontecer, mas por enquanto não me baseei em ninguém de verdade.

Universa: Qual foi sua reação ao saber que Shonda Rhimes estava interessada em desenvolver uma série baseada em "The Bridgertons"? Você tem participação ativa no projeto?

Julia: Mal podia acreditar! Como tradicionalmente Hollywood não procura romances para obter material de referência, nunca pensei que meus livros um dia fossem adaptados para o cinema ou a TV. Ainda mais por Shonda Rhimes, que é, de longe, a pessoa mais inteligente da televisão. Estou encantada com ela. Sou consultora da série, mas confio na equipe da Shondaland de todo coração.

Universa: Você pensa em escrever um romance contemporâneo?

Julia: Por enquanto, não. Claro que, caso surja uma ótima ideia que não funcione em um cenário histórico, eu vou me jogar nisso. Mas, no momento, todas as minhas ideias parecem estar diretamente ligadas à época da regência da Inglaterra.

Universa: Você acha que, em algum nível, toda mulher é romântica? Por quê?

Julia: Eu acho que em algum nível toda pessoa é romântica. Mas é importante lembrar que romance significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Para algumas, pode ser receber ou dar um buquê de flores. Para outras, pode ser simplesmente a maneira como o parceiro sorri quando se encontram. Eu acho que a maioria dos seres humanos quer, sim, amor e um final feliz. Dessa forma, somos todos românticos.

Universa: O que Jane Austen, que é sempre lembrada quando seu trabalho é citado, representa para você e para a literatura?

Julia: Ela é a madrinha dos romances modernos, sem dúvida. Foi ela quem nos fez perceber que toda mulher pode ser inteligente, atrevida e ainda encontrar amor. E que compromisso e crescimento pessoal não significam, necessariamente, abandonar seus princípios ou seus sonhos.