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Com dualidade de genitálias, Rita virou Raí aos 50 e luta contra 3º câncer

Quadro pintado por Raí Albuquerque com retratos da vida dele - Arquivo Pessoal
Quadro pintado por Raí Albuquerque com retratos da vida dele Imagem: Arquivo Pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

16/12/2019 04h00

Raí Albuquerque nasceu aos 50 anos. Até então, ele habitava o corpo de Rita, nascida em 1965.

Raí mora em Maceió, onde vive com a mulher e onde encara o tratamento de um terceiro câncer. Foi por causa do segundo câncer, na mama, que ele entendeu o que era um intersexo e os problemas que poderiam ser causados pela dualidade de genitálias -e a recorrência das doenças que teve que enfrentar.

Ainda como Rita, ele enfrentou muitos obstáculos. Aos 5, ao encarar uma quadrilha junina na escola, brigou para dançar com uma menina. Aos 15, sem menstruar, foi ao primeiro ginecologista, que poderia ter mudado muita coisa naquele momento, mas não agiu.

Aos 35, apareceu o primeiro câncer, de tireoide. Retirou a glândula, e seguiu sua vida até os 50 anos, quando veio a doença atingiu a mama. Símbolo do corpo feminino, Rita retirou não só uma, mas as duas mamas para preservar sua saúde. O momento de sofrimento lhe deu força para fazer nascer o Raí.

Casado há 34 anos, mudou de nome recentemente. Foi quando descobriu um novo câncer, desta vez no endométrio. Retirou o útero e agora faz quimioterapia como complemento do tratamento. "Espero que possa contribuir com os intersexos, para que possam ter uma vida digna e humana."

Raí conta abaixo um pouco de sua história.

Raí Albuquerque - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Raí mostra sua foto de quando ainda era Rita
Imagem: Arquivo Pessoal

"Nasci em 1965. Chamava-me Rita. Nessa época não existia a globalização, o mundo observava a Guerra Fria e a informação era muito relativa. A ditadura militar cerceava todo tipo de informação que considerasse polêmica. Então, debater sexualidade era mais que um tabu: era quase um crime.

Mesmo assim, aos 5 anos, gritei para sociedade em alto e bom som: 'Sou um menino e só danço a quadrilha junina do colégio com uma menina'. Essa menina já era, à época, minha primeira namorada.

Aos 15 anos, com a 'monstruação' chegando, fui levado a uma ginecologista que, ao se deparar com minha genitália ambígua, não me prestou nenhum tipo de orientação —talvez por falta de conhecimento ou preconceito com o caso em questão.

Já adulto, tive uma namorada médica e ouvi a palavra intersexo pela primeira vez. Infelizmente não deu tempo de fazer muita coisa, e fui acometido de um câncer de tireoide aos 35 anos. Fiz a cirurgia e tomei iodo radioativo. Passei e virei a página, mas de novo havia uma falta de definição da minha condição, que ficou relativizada.

Aos 50 anos, ao ter um câncer de mama, finalmente a médica me informou que essa dualidade hormonal provoca câncer. Ali então comecei a luta para vencer a doença com quimioterapia e radioterapia. Sofri, mas venci e entendi naquele momento que precisava mudar. Meu corpo pedia.

Finalmente entrei na Justiça para mudar meu nome e sexo, anexando fotos da barba e genitália ambígua, junto com os atestados dos médicos. Anexei tudo, e com essa condição o juiz deferiu o pedido. Virei Raí.

Em 6 meses alterei todos os documentos oficiais. Também retirei a outra mama para fechar fenótipo. A sensação de liberdade foi incrível, me fez pintar um quadro [é a imagem que ilustra esta reportagem] e escrever na minha agenda.

Sempre fui taxado de lésbica ou, na linguagem chula, de "sapatão". Todos têm o direito de exercer sua sexualidade, inclusive os intersexos. Segundo a médica, somos 1,35% da humanidade. Infelizmente existe desconhecimento e faltam políticas públicas para nossa classe.

Recentemente fiz uma histerectomia [retirada do útero] e estou tomando quimioterapia. A disfunção hormonal, se informada na adolescência, poderia resultar nas cirurgias de retirada das mamas e a útero. Ou seja, os cânceres poderiam ser evitados.

Algo importante que preciso contar: tenho o apoio da minha família. Meus pais já com mais de 80 anos aceitaram a minha condição, mas a minha mulher -com a qual sou casado há 34 anos- ainda passa muito preconceito na família dela. Em 2011 oficializamos uma união estável, e em 2013 casamos oficialmente e recebemos a sonhada certidão. Isso se tornou possível por causa do STF [Supremo Tribunal Federal], que nos concedeu cidadania digna.

Recentemente fui convidado para dar uma palestra sobre a minha condição no lançamento do livro Intersexo, da juíza conhecida Maria Berenice Dias. Espero que a minha fala possa contribuir com os intersexos, para que possam ter uma vida digna e humana."