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Ela sofreu abuso de pediatra e quer mapear violência sexual na área médica

A atriz Nina Marqueti foi abusada sexualmente por seu pediatra na adolescência - Arquivo pessoal
A atriz Nina Marqueti foi abusada sexualmente por seu pediatra na adolescência Imagem: Arquivo pessoal

Aline Takashima

Colaboração para Universa

13/12/2019 04h00

A atriz Nina Marqueti, 28, bebe um café no Brooklyn enquanto conversa com a reportagem por videoconferência. Quem olha para a mulher de sorriso largo e rosto sereno não imagina pelo que ela passou. Aos 16 anos, sofreu abuso sexual de seu pediatra na cidade onde cresceu, Umuarama, no interior do Paraná. Neste ano, decidiu denunciá-lo e se tornar porta-voz de um tema pouco discutido: a violência sexual no meio médico.

Ela encabeça o projeto Onde Dói, que irá mapear casos de violência sexual cometidos por profissionais da área médica. A ideia é trazer mais do que números. Mas também corpo e voz a essas histórias.

A iniciativa, criada em conjunto com grupos e coletivos feministas, como Mulheres da Resistência no Exterior, Mulheres Unidas Com o Brasil e Plataforma Geni, pretende apontar quem são as vítimas, onde moram, o que aconteceu com elas e o que sentem. Outro objetivo é acolher e orientar quem sofre esse tipo de violência com suporte emocional e psicológico.

O projeto recebeu mais de 4.000 relatos em diferentes plataformas: no Instagram, Facebook, e-mail e nas redes sociais de Nina. A campanha também criou a hashtag #OndeDói que chegou ao terceiro lugar nos trending topics do Twitter no Brasil, com depoimentos sobre abusos sexuais cometidos por profissionais da saúde como médicos, enfermeiros e dentistas.

Na plataforma é possível responder um formulário para ajudar o mapeamento. O questionário pede detalhes como etnia, idade, orientação sexual, se o assédio ocorreu por um homem ou mulher e se pessoa conhece alguém que já foi vítima de assédio por parte de um médico.

A vítima também encontra ajuda emocional e jurídica. O projeto fornece uma lista com organizações parceiras para apoio psicológico, como Mapa do Acolhimento, Tamo Juntas e Papo Preta, entre outras. E reúne ainda o contato de entidades que fornecem apoio jurídico, como Raquel Ajuda e Rede Feminista de Juristas.

Se a vítima precisa de apoio urgente, pode responder um questionário com telefone, e-mail e uma mensagem explicando a situação. "É um grupo grande de pessoas que estão empenhadas em ajudar. O mais importante é procurar ajuda."

"Acho que meu médico me estuprou"

"Aqui dói?", perguntava o pediatra enquanto apertava a barriga da garota. "E aqui?", questionava, deslizando a mão para a virilha até chegar na vagina da menina de 16 anos. Naquele momento, Nina olhou para a parede e contorceu o corpo com as dores do toque. Estava sozinha e com medo. Não entendia o motivo do procedimento. Sua mãe pediu para ela entregar alguns exames e voltar para casa.

Desde os 12 anos, ela se consultava com o pediatra gastroenterologista, responsável por tratar doenças relacionadas à digestão e a dores de estômago. Saiu do consultório desnorteada. Vomitou e, mais tarde naquele dia, confidenciou para um amigo: "Acho que meu médico me estuprou".

O médico pediatra é conhecido na região. A garota confidenciou para a mãe o ocorrido, mas não recebeu apoio. E a vida da menina não foi a mesma depois daquela consulta. Demorou mais de uma década para curar as suas feridas. "Eu tive muita culpa e medo de que o meu silêncio ajudasse o médico. Eu pensava: 'Poxa, ele é pediatra. Imagina quantas crianças ainda estão passando por isso'. Tinha vontade de denunciar, mas muito medo também."

"A culpa e a vergonha são do criminoso"

Não há uma pesquisa extensa no Brasil sobre violência sexual no meio médico. O site de notícias The Intercept Brasil realizou um levantamento sobre violência sexual em instituições de saúde e revelou que, entre 2014 e 2019, ocorreram 1.239 registros de estupro e 495 casos de assédio em nove estados brasileiros.

Mas há mais casos além desses. Apenas 10% dos episódios de estupro são denunciados, de acordo com o Atlas da Violência de 2018. No país, são cerca de 135 estupros por dia.

"Eu decidi mostrar o meu rosto para dizer que as mulheres não precisam se sentir envergonhadas e sujas. A culpa e a vergonha são do criminoso. A gente não precisa sofrer sozinha. Eu quero que outras mulheres saibam que podem encontrar ajuda e acolhimento", diz a atriz.

Falar sobre a experiência foi fundamental no processo de cura de Nina. Para isso, ela criou o monólogo "A Flor da Matriarca". A peça, encenada em Nova York, onde vive desde 2016, retrata o trauma que carregou depois do abuso e é dividida nas fases de dor, depressão, confusão e superação. "Decidi escrever a minha história. Foi muito difícil. Mas percebi que toda vez que passava por essa dor eu saía mais aliviada."

A encenação contou com apenas duas apresentações. O suficiente para Nina receber relatos de outras mulheres que se identificaram com o episódio. "Algumas pessoas diziam que eu era corajosa por tratar do trauma na peça. Mas, se a gente esconde, fica muito doloroso e confuso. É difícil lidar sozinha. A partir do momento em que você identifica o problema é que o processo de cura começa."

O trauma

Nina sofreu anos em silêncio. E desenvolveu uma série de doenças e problemas por conta do trauma, como depressão, ansiedade, pensamentos suicidas e dificuldade de se relacionar com homens. Tem medo de médicos e enfermeiros. "Quando o seu corpo é violado, você sente que ele vai ser sempre violado. Alguém invadiu a sua casa, e a porta está ali aberta. Nas minhas relações, eu tinha medo de ser abusada por todo mundo. Pensava: 'Como eu vou conseguir identificar o próximo violador antes que ele faça alguma coisa?' Isso me trazia muita ansiedade."

Por isso, a terapia foi fundamental. Hoje a atriz consegue falar sobre o trauma sem chorar. "A ajuda emocional é imprescindível. É muito difícil carregar este fardo", diz.

A psicóloga Thamires Monteiro do Carmo explica que uma particularidade dos casos de abuso sexual em consultórios médicos é que a vítima está em uma situação vulnerável e espera a proteção do profissional da saúde.

A especialista relata que, muitas vezes, as pacientes demoram para perceber que um limite foi ultrapassado numa consulta médica. "Ao retomar os fatos, algumas vítimas recordam detalhes graves." Daí a importância do projeto Onde Dói, ressalta. "A iniciativa é ótima pois propõe uma reflexão para as mulheres sobre o tema. Às vezes, as vítimas não entendem o que aconteceu." A campanha conta com um grupo de psicólogas que oferece atendimento. Na plataforma, é possível encontrar ajuda de especialistas.

Além de apoio profissional, Thamires defende a necessidade de uma rede de amigos e familiares que deem suporte à vítima. "Infelizmente a nossa cultura culpabiliza a mulher pela violência que sofre. Mas a rede de apoio mostra que a culpa não é dela."

Só neste ano Nina contou com o acolhimento que tanto queria da sua família. "Demorou um tempo, mas a gente conseguiu lidar com essa dor. Eu entendi que não foi uma falta de proteção dos meus pais. E, sim, falta de condições e ferramentas para lidar com a situação." No início de dezembro, o pai da atriz registrou um boletim de ocorrência contando o relato da filha. E a mãe deu um depoimento na delegacia. O Ministério Público aceitou o caso.

O processo

O pediatra que atendia Nina se chama Allessio Fiore Sandri Junior. Ele trabalha desde a década de 1990 em Umuarama. Até a quinta-feira (12), foram realizadas quatro denúncias formais contra o médico. A vítima mais nova tinha 13 anos quando o crime ocorreu. Na próxima segunda, será realizada a primeira reunião sobre o caso com a promotoria.

Universa entrou em contato quatro vezes com o advogado do médico. Chegou a conversar com ele por telefone, porém até a conclusão desta reportagem não recebeu nenhuma declaração sobre o caso.

A advogada Manuela Gaspareto atende três vítimas do pediatra. Ela conta que notou um comportamento padrão do médico, de acordo com dois dos relatos. Primeiro, o pediatra examinava a criança em um procedimento de praxe. Ele auscultava o coração e tocava o abdômen. Em seguida, pedia para a criança se auto examinar, para sentir o bolo fecal próximo ao ventre. Quando isso acontecia, ele colocava a mão dentro da calcinha da vítima. Diante do comportamento, as pacientes ficavam confusas.

A advogada Daniela Bornin, responsável pelo apoio jurídico de Nina, explica: "Muitas vezes, a pessoa não sabe que é vítima de um crime sexual, pois não sofreu violência explícita ou ameaça. O profissional de saúde apalpa o seio e enfia o dedo na vagina. O abusador aproveita a situação e engana a paciente."

Daniela atende diversos casos de violência sexual. E ressalta que, antes de iniciar um processo penal, conversa muito com as clientes. "Em um primeiro momento, eu defendo que a vítima cuide da sua saúde mental. Pois ela vai reviver aquele acontecimento muitas vezes e irá lidar com pessoas poderosas, como médicos, por exemplo. Sem contar que, em uma cultura machista como a nossa, a palavra do homem tem mais valor do que a da mulher."

Nina também defende que a decisão de denunciar é da vítima. As acusações são importantes, diz, pois "se várias mulheres de diferentes idades e épocas falam a mesma coisa a Justiça dá atenção". Mas sabe, por experiência própria, que cada mulher tem o seu tempo.

Um dos maiores medos das vítimas, de acordo com a atriz, é que, ao falar sobre o trauma, as mulheres se resumam a essa experiência. "Muitas pensam que vão se tornar a pessoa que foi estuprada e só. Não vão ter espaço para ser outra coisa."

Parte do trabalho dela é ajudar outras mulheres para que esse medo não se torne realidade. "Eu passei por esse trauma, fez parte de mim, mas eu sou muito maior que isso. E vou lutar para que outras mulheres não passem por essa experiência. Não estamos sozinhas."