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23% das mulheres que abandonam a escola precisam cuidar da casa, diz estudo

Getty Images
Imagem: Getty Images

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

13/12/2019 04h00Atualizada em 16/12/2019 12h04

O estudo "Infância, Gênero e Orçamento Público no Brasil" aponta que questões como o machismo e a falta de verbas e políticas públicas de gênero fazem com que adolescentes e mulheres tenham uma evasão escolar 29 vezes maior que os homens no país para cuidar da casa ou de alguém. A diferença ocorre em todo país e se torna ainda maior nas regiões mais pobres, como Norte e Nordeste.

O levantamento foi feito pelo Cedeca (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente) do Ceará com base na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua da Educação 2018.

Segundo o levantamento da instituição cearense, na faixa de 15 e 29 anos, 23,3% das adolescentes e mulheres que tiveram que deixar os estudos alegaram que o fizeram para cuidar da casa ou de uma pessoa.

Entre adolescentes e homens jovens, esse percentual é de 0,8%. Entre eles, o grande motivo para deixar os estudos é para trabalhar fora: 47,7% dos que abandonam a escola alegaram isso, seguido de 25,3% que não têm interesse —entre as mulheres essas taxas são menores: 27,9% e 16%, respectivamente.

No Norte, o percentual de mulheres jovens que não estudam por conta de afazeres domésticos ou cuidado de pessoas é o maior do país e chega a 31,7% do total. No Nordeste, a diferença entre os sexos é a maior: enquanto 26,4% das jovens largam o estudo por afazeres domésticos, entre eles esse percentual era de 0,7% —37 vezes mais.

O detalhamento da análise mostra que o gênero começa a ter diferenças maiores a conforme a idade aumenta, mas também pode ser identificado em crianças.

"Percebe-se, previamente a qualquer análise mais aprofundada que as meninas são exploradas por mais horas de trabalho doméstico que os meninos em todas as categorias etárias e regiões geográficas", diz o estudo.

Em 2018, entre crianças de 5 a 13 anos, as meninas já exerciam mais atividades de casa que os meninos: 6,9 horas semanais, contra 5,8. Mais uma vez, é no Nordeste que está a maior diferença: meninos trabalham 6,3 horas e meninas 8.

Entre adolescentes de 14 a 17 anos, cresce o número de horas trabalhadas em casa e começa a haver uma maior diferença entre meninos e meninas. Entre eles, a média é de 8,1 horas por semana contra 12,3 delas.

"Essa constatação atesta o período em que o machismo cristalizasse de maneira bastante intrincada na divisão sexual do trabalho, momento de transição entre a infância e a puberdade, prejudicando sobremaneira o desenvolvimento das adolescentes, principalmente as meninas socioeconomicamente vulneráveis", aponta o texto.

Diferenças são acentuadas no Nordeste

Para o pesquisador e um dos autores do estudo, Renam Magalhães, os baixos índices de desenvolvimento do Nordeste fazem com a que a região sinta mais os impactos da diferença de gênero. "Tudo que tem de mazela social é acentuada no Nordeste", relata.

Ele aponta ainda que o problema se agrava no Nordeste por uma série de fatores. "Um deles é a pobreza ser maior, e essas jovens não têm uma família que tenha condição de mantê-las estudando. A mulher acaba sacrificando os estudos porque tem de contribuir para a manutenção do lar. Já eles deixam os estudos muito mais para trabalhar, nunca para casa. Aí que entra a questão de gênero, porque não dá para negar que se trata de uma sociedade patriarcal: desde a infância, a menina é condicionada a ter as atividades de cuidado do lar. Isso acaba impactando nessa taxa", explica Magalhães.

Para ele, não há como deixar de culpar o poder público pela falta de mais investimentos. "Como o orçamento deveria ser regionalizado, deveria considerar os indicadores sociais. E quando o orçamento não reflete as condições sociais daquela localidade, a desigualdade acaba se exacerbando."

Para Magalhães, o resultado da pesquisa mostra que há um cenário preocupante pela frente. "Com a ausência de estudo não se consegue acessar um posto de trabalho com maior qualidade -e muitas vezes não consegue sequer trabalho, ficando numa condição perene de atividade doméstica", explica.

Uma das questões que impactam é a falta de investimentos públicos. "Não há políticas para atenuar a desigualdade de gênero. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz várias destinações orçamentárias, mas os orçamentos ainda não se adequaram", avalia o pesquisador.

Mudança deve vir cedo

A pesquisadora e professora Lucelena Ferreira atua há mais uma década no tema de gênero e liderança e analisou alguns dados da pesquisa do Cedeca a pedido de Universa. Ela afirma que o machismo ainda tem um impacto gritante na vida das mulheres.

"A expectativa social predominante é a de que a mulher seja responsável pelos afazeres domésticos e familiares, mesmo que tenha que dar conta também de uma carreira remunerada", avalia.

Ela lembra o sociólogo Ritxar Bacete, que é especialista em igualdade de gênero, e aponta os homens são "cronófagos". "Eles roubam muito tempo —e energia- das mulheres por meio das tarefas não remuneradas que elas realizam em casa. Trata-se de um dos maiores privilégios concedidos aos homens pela sociedade machista."

Sobre a maior evasão escolar, ela afirma que mudar "não é uma questão de fácil resposta." "Para que se construa uma sociedade com igualdade de gênero são necessárias algumas providências urgentes nos âmbitos educacional, político e empresarial", diz, citando, por exemplo, a necessidade de ampliação da rede de creches públicas para garantir que as mães tenham onde deixar seus filhos.

"No âmbito educacional, cabe às famílias e às escolas prover uma educação em que não se reforcem estereótipos de gênero, a começar pela´não divisão tradicional de brinquedos, cores, comportamentos, tarefas por gênero. É necessário proporcionar às crianças uma socialização primária em que meninas sejam igualmente estimuladas a estudar e almejar uma carreira, e crianças e adolescentes de ambos os sexos participem das tarefas domésticas adequadas à sua idade na mesma intensidade. Como toda mudança cultural, trata-se de um processo lento, que não se realiza da noite para o dia. Mas é o único caminho possível", explica.

Jovens entre 15 e 29 anos que deixam estudos para cuidar da casa:

Sul
Homens - 1,2%
Mulheres - 20,3%

Sudeste
Homens - 0,5%
Mulheres - 19,7%

Centro-Oeste
Homens - 0,9%
Mulheres - 24,1%

Nordeste
Homens - 0,7%
Mulheres - 26,4%

Norte
Homens - 1,3%
Mulheres - 31,7%

Fonte: PNAD Educação/Cedeca-CE