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"Matar mulher virou banal", diz autora da PEC do feminicídio imprescritível

A senadora Rose de Freitas é autora da PEC que inclui o feminicídio e o estupro no rol de crimes inafiançáveis e imprescritíveis - Divulgação
A senadora Rose de Freitas é autora da PEC que inclui o feminicídio e o estupro no rol de crimes inafiançáveis e imprescritíveis Imagem: Divulgação

Luiza Souto

De Universa

11/11/2019 04h00

Na vida parlamentar desde 1982, quando se tornou deputada estadual pelo Espírito Santo, a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), 70, já dividiu banheiro com homem na Câmara e teve sua capacidade de presidir uma sessão na Câmara questionada pelo deputado federal Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA). Não se curvou e ainda engrossou suas propostas em defesa da mulher, como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que inclui o feminicídio e o estupro no rol de crimes inafiançáveis e imprescritíveis, aprovada no Senado no último dia 6. A PEC segue agora para análise da Câmara dos Deputados.

Os anos de vivência no meio —foi ainda seis vezes deputada federal— lhe renderam o protagonismo feminino em alguns setores: foi a primeira mulher a ocupar um cargo titular na mesa diretora da Câmara dos Deputados como 1ª vice-presidente, em 2011, e a primeira senadora pelo Espírito Santo, em 2014. Apesar de ter nascido em Caratinga (MG), foi nesse estado onde a família se estabeleceu. Foi também a primeira mulher a presidir a Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional, formada por deputados e senadores, em 2015.

Mãe do diretor de artes Gabriel Frizzera, 42, e da estilista Giulia Borges, 35, filhos do ex-vereador de Vitória, Hugo Borges Júnior, morto em 2010, a senadora está perto de se afastar do cargo: ela contraiu a febre maculosa, doença grave, transmitida pelo carrapato-estrela, que pode atingir o sistema nervoso central e causar sequelas como surdez e paralisia.

Mas foi com bom humor e sentada sozinha no plenário que a senadora falou com Universa ao telefone sobre a saúde e suas propostas voltadas para a mulher. "Parte do meu cérebro não está bem. Você está conversando com a boa agora."

Por que apresentou a proposta de tornar o feminicídio e o estupro crimes inafiançáveis e imprescritíveis?
É para não ter impunidade. Ao longo dos anos, vários projetos em defesa da mulher foram aprovados, fomos incluindo outras penalidades dentro da Lei Maria da Penha, e todos os dias discutimos maneiras de impedir o avanço desse crime. E não conseguimos. Matar a mulher passou a ser banal. Então resolvemos que esse crime não prescreve. Se o homem matar a mulher, em qualquer trecho da vida dele, por onde ele for, a Justiça vai alcançá-lo. Pedimos urgência para a votação na Câmara e tenho certeza de que será pautada imediatamente.

Esses tipos de violência chegaram muito próximo à senhora?
Não, mas conheço muitos casos. É como se fosse um instrumento de vingança contra a mulher que ousa procurar caminhos para sua vida, independente da relação subjugada em que ela estava. No Brasil, essa cultura predominante, que só permitiu à mulher votar em 1932, cresceu porque há impunidade. Uma pesquisa aponta que, em Minas Gerais, a cada hora, um processo relacionado à Lei Maria da Penha prescreve. Tem que ter apadrinhamento político para o processo andar?

Colocar arma na mão de uma mulher a protege?
Arma não é proteção para ninguém. Acho que é secundarizar a política, que é mais importante. O Estado tem que cumprir o seu papel. Tem delegacia da mulher que não funciona, não há dinheiro para distribuir o botão de pânico. Estamos numa escalada que parece não ter fim e ainda terceirizando o problema.

Após a aprovação da PEC, sugeriram que todo assassinato deveria ser imprescritível e inafiançável e que, se a mulher briga por direitos iguais, ela não deve ser diferenciada de um homem ou um idoso, por exemplo. A senhora concorda?
Quem fala isso quer que a lei não exista. Me dê estatísticas de mulheres que matam homens. Me dê estatísticas de mulheres espancando homens ou assediando e levando a mão ao corpo deles em local público. O número de estupros cresceu no país. São as mulheres que estão estuprando os homens? Não dá para discutir. Respeito qualquer argumento contrário, mas quero que vejam a realidade com um olhar mais humano. Nós administrávamos a casa, cuidávamos do filho, do marido, sem direito a sonhos, e ninguém nunca levou isso em conta. Agora querem que aceitemos caladas a violência com que nos tratam?

A senhora tem outras propostas para mulheres, como o aumento da licença-maternidade para quem tem filhos prematuros. É papel de toda parlamentar mulher apresentar pautas femininas?
Se a mulher não tiver projeto voltado para defender aquilo em que ela acredita, que é a igualdade, quem vai fazer por ela? Qual homem vai sentar aqui e legislar a favor dela? Às vezes, ouço um parlamentar perguntando qual a pauta feminina de hoje. Pois vou lá e procuro outras, seja no campo da educação, da tecnologia ou outro que permita a integração da mulher. Já vi mulher querendo votar contra outra mulher. Sentei do lado e perguntei o porquê. E, diante dos argumentos, falei: "Só para pra pensar em quem gera a vida". E ela mudou de ideia. Enquanto estiver aqui, vão ter que conviver com essa pauta. Mas tem mulher muito capacitada injetando propostas na economia e em outros campos.

A senhora está na política desde 1982, quando se elegeu pela primeira vez como deputada estadual. Como era o machismo naquela época?
Era muito mais forte. Não tinha nem banheiro na Casa para a mulher. Tinha que esperar o homem sair com o fecho éclair aberto, se sentindo o dono daquele espaço, para entrar. Quando pedimos banheiro, lembro de um jornal que escreveu a seguinte manchete: "Bancada do batom reivindica privilégio".

Sofreu assédio?
Nunca houve abuso ou assédio, mas aconteceu de eu sentar na Mesa da Câmara, na condição de presidente em exercício, durante a sessão, e um deputado levantar uma questão de ordem. Eu não entendi e recorri ao assessor para tirar a dúvida. A pessoa gritou 14 vezes para que eu resolvesse, mesmo explicando que estava estudando o caso. E ele gritava: "Presidente, venha ao plenário me socorrer". E o presidente foi. Não deveria ter ido. Fui ao plenário dizer para essa pessoa que gritou nunca mais fazer aquilo e que o que tinha acabado de acontecer era um retrato da discriminação que se tem contra a mulher. O plenário se levantou ao meu lado. Ele pediu desculpas.

A senhora tem um casal de filhos. Qual o papel dos pais para que os filhos não reproduzam o machismo?
É a educação dentro de casa com a complementação da escola. Meu filho Gabriel, de 42 anos, é feminista. Outro dia, a filha dele, de 9 anos, falou que queria jogar futebol e lutar com uma espada de brinquedo. E ele levou. Ele apoia e respeita todas as iniciativas dela e da mulher dele. Eu me separei cedo, depois fiquei viúva, e Gabriel sempre foi meu companheiro. E a Giulia, de 35, via esse respeito, diferente dos meus irmãos mais velhos, que tinham aquela divisão de fêmea e macho, traziam uma cultura machista. Meus filhos viam meu posicionamento na sociedade. Criei os dois deixando eles serem o que queriam. Hoje Giulia é uma grande estilista e meu filho está no Canadá fazendo jogos para a Marvel.

A senhora mencionou que a escola tem seu papel na educação, mas colegas seus defendem que não se deve nem falar de sexualidade nesses locais. Concorda?
Não estou falando de sexualidade. Tem uma problemática aí, que é quando levam para o lado ideológico. A educação sexual é importante, mas não é ensinar como se inicia a vida sexual, e sim como cuidar do seu sexo. Levou 20 anos para que a vacina HPV fosse implantada na rede pública de saúde. E enfrentei uma odisseia em defesa dessa causa, antes de ser senadora, porque as pessoas falavam que a vacina abria a oportunidade para a iniciação sexual prematuramente, aos nove, dez anos. Quanta ignorância! A escola tem o papel de falar sobre concepção e cuidado com o próprio corpo.

A senhora vai se afastar das atividades por pelo menos quatro meses. Por quê?
Infelizmente, fui acometida pela doença do carrapato, que me gerou a febre maculosa. Ela é rara, não há muitas pessoas especializadas nisso e poderia ter morrido. Fiquei com sequela neurológica e dificuldade motora. Parte do meu cérebro não está bem. Você está conversando com a parte boa agora. Tenho um caminho a escolher. Não sei trabalhar pouco. É uma média de 16 horas por dia. Mas preciso tratar da minha saúde. O Brasil não forma infectologistas e não tem dinheiro pra pesquisa. Mas encontrei um especialista dedicado e estou aguardando o último resultado dos exames. Tem hora que a dor é muito grande, tenho febre, mas escolhi viver. Não quero morrer agora, não. Colocarei meu suplente (Luiz Pastore/MDB) no meu lugar, que não é uma mulher, mas tem compromisso de votar tudo relativo a elas também.