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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Ex-catadora, ela criou agência de intercâmbio para ajudar mulheres carentes

Silvia, da agência Intercâmbio Woman, e a aluna Josineide  - Divulgação
Silvia, da agência Intercâmbio Woman, e a aluna Josineide Imagem: Divulgação

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

30/10/2019 04h00

Silvia Regina da Silva conheceu de perto e bem cedo a realidade de mulheres pobres e com poucas oportunidades no mercado de trabalho. Aos cinco anos, ela e os sete irmãos trabalhavam com a mãe recolhendo e vendendo material reciclável nas ruas da região central de São Paulo.

Quando não vendiam nada, não voltavam para casa, que ficava em Itaquaquecetuba, município vizinho à capital paulista. Nessas situações, para não perder a viagem e tentar algo no dia seguinte, dormiam em um abrigo de papelão e plástico improvisado na calçada.

Das eventuais noites nas ruas, Silvia estudou, se formou em duas faculdades e acabou conseguindo passar dias e noites bem longe, em Montreal, durante um intercâmbio no Canadá. A experiência inspirou a ex-catadora, de 44 anos, a criar a agência Intercâmbio Woman para oferecer bolsas de estudo, aulas profissionalizantes e, futuramente, viagens de intercâmbio a mulheres carentes.

O caminho até aqui não foi fácil. Quando jovem, mesmo enfrentando uma realidade difícil, Silvia se empenhava nos estudos e logo começou a se dedicar a atividades empreendedoras. Se depois de adulta virou cabeleireira, na infância improvisava apresentações de teatro e na adolescência vendia roupas íntimas.

"Só parei de ir à escola depois que engravidei da minha primeira filha, aos 16 anos. Nessa época, tinha um companheiro, que, embora fosse um bom pai, era viciado em álcool e me agredia", conta. "Passou um tempo e consegui voltar aos estudos, mas tive de interrompê-los mais uma vez, porque engravidei novamente. Meu parceiro não queria que eu retornasse e eu ainda precisava trabalhar."

Silvia só conseguiu terminar definitivamente a escola aos 30 anos, quando, já separada do ex, voltou a estudar junto com seu novo companheiro. Cursar o ensino superior era um antigo desejo seu, mas ela teve de esperar mais oito anos para começar a faculdade. Nesse intervalo, trabalhou muito para sustentar os filhos e esperou eles crescerem um pouco para poder se dedicar aos estudos. Hoje, depois de pleitear duas bolsas educacionais por programas de financiamento, é formada em comunicação institucional e administração.

Privilégio e retribuição

Em 2017, enquanto fazia a segunda graduação, Silvia teve a oportunidade de participar de um intercâmbio de um mês em Montreal, no Canadá, onde fez um curso de negócios e comunicação na Universidade McGill. Depois da experiência, diz ter voltado para o Brasil sentindo-se uma pessoa privilegiada. Movida então por um sentimento de retribuição, resolveu criar uma agência de intercâmbio comprometida em tentar mudar a realidade pessoal e profissional de mulheres em situação vulnerável, como ela foi um dia.

No ano seguinte, vendeu o carro para voltar ao Canadá. Lá, passou três meses em contato com instituições de ensino a fim de firmar parcerias para cursos e programas de idioma para mulheres carentes no exterior. "Atualmente, minha agência tem vínculo com a escola canadense em que estudei, com outra americana e com uma agência educacional que atua globalmente. Aqui, no Brasil, também tive de correr atrás de patrocinadores de causas sociais e professores estrangeiros que dão apoio com aulas de inglês e francês", diz.

O negócio de Silvia, como qualquer outra agência de intercâmbio, trabalha com pacotes de cursos no exterior, com o diferencial de vendê-los por preços acessíveis, não cobrar taxas para intermediar a relação dos alunos com as instituições de ensino e destinar para mulheres carentes bolsas de estudo e aulas profissionalizantes gratuitas e financiadas por empresas brasileiras engajadas com políticas sociais.

Atualmente, a Intercâmbio Woman conta com o apoio de duas dessas empresas e procura outras para financiar a primeira viagem internacional de sua turma.

Além de uma nova língua

Enquanto não atinge a meta, a agência busca preparar as futuras intercambistas inscritas no programa de bolsas com aulas de idioma e capacitação oferecidas aqui mesmo no Brasil. Elas não pagam nada e exige-se apenas que tenham mais de 14 anos e estejam alfabetizadas em português. Os encontros ocorrem, provisoriamente, no antigo salão de beleza onde Silvia trabalhava, em Itaquaquecetuba. Por vezes, a empresa promove eventos maiores, como palestras e workshops, em locais cedidos por instituições públicas, como prefeitura, associações e escolas.

"Para mim, o maior desafio mesmo é trabalhar a autoestima das mulheres da periferia para que possam acreditar em si mesmas, porque acham que esse tipo de oportunidade não é para elas", diz Silvia.

Ela divulgação o projeto na região em que mora, no boca a boca, por meio de conhecidos e pelo site da empresa.

"Muitas me procuram, se inscrevem para participar, mas logo abandonam as aulas e a ideia de realizar um intercâmbio por não saberem o que querem para o futuro. Tenho vagas a serem preenchidas, mas faltam pessoas que as queiram", diz ela, acrescentando que esse é o principal empecilho na hora de convencer patrocinadores a apostar no projeto.

Atualmente, cinco alunas fazem com ela um curso de assistente administrativo com inglês nível iniciante. A meta é que, em 2020, estejam um pouco mais fluentes no idioma para participarem de um intercâmbio no Canadá.

"Depois de tantos anos longe da escola, está sendo maravilhoso voltar a aprender, ainda mais em inglês. Em breve, realizarei mais um sonho, o de poder arranjar um emprego estando qualificada", diz Josineide Morais, 42 anos. Outra aluna, Fabricia Oliveira, 35 anos, complementa: "Minha vida tem mudado em vários aspectos. Descobri que sou capaz, posso evoluir e que portas se abrem através do aprendizado".