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Mulheres driblam assédio e machismo e ganham espaço em estádios de futebol

Movimento Alvinegras, de torcedoras do Corinthians - Divulgação
Movimento Alvinegras, de torcedoras do Corinthians Imagem: Divulgação

Breno Damascena

Colaboração para Universa

27/10/2019 04h00

Antes de se tornar uma torcedora assídua, Bárbara Pereira foi ao estádio apenas duas vezes, sempre acompanhada do então marido. Hoje, com 33 anos, a palmeirense conta que ele não a deixava ir sozinha. Por ser torcedor do São Paulo, só permitia que a jovem fosse assistir aos jogos do tricolor paulista, e tinha que ser ao seu lado. Após sete anos de casamento, a professora de química se divorciou e começou a frequentar as arquibancadas.

Bárbara passou a comparecer aos jogos do Palmeiras desacompanhada. Chega mais cedo e vai a um bar que fica na frente do estádio para fazer amizades. "As pessoas mais velhas, que conhecem mais o time, são as que mais gostam de puxar assunto", diz. Porém, na hora de escolher o local para ver o jogo, opta por ficar longe das torcidas organizadas. Por conta do assédio, procura os setores menos movimentados.

"A gente é estereotipada tanto por quem gosta quanto por quem não gosta do esporte. Quando falamos que torcemos por um time, quase temos que passar em um teste de conhecimento. A mulher ainda sofre bastante, existe grande resistência à nossa presença. Tem que saber lidar, mas, para alguns torcedores, eu só ignoro e fecho a cara.", diz Bárbara.

Mesmo num momento em que o futebol feminino se coloca em evidência, o ambiente brasileiro ainda é desfavorável para as mulheres. "Uma vez, ao descobrir que eu era torcedora, um garoto disse que não queria ficar comigo porque mulher que gosta de futebol não presta", conta a torcedora. De forma semelhante, Aline Pires descobriu que demonstrar amor pelo time do coração requer resiliência.

"A maior hostilidade veio do meu ex-namorado, que não aceitava o fato de eu ser apaixonada por futebol. Sempre condenou a minha presença e insinuava que eu estava no estádio por interesse em outro homem. Começou, então, a ir comigo e as brigas eram constantes. Muitas vezes, ali mesmo, na arquibancada. A pessoa de quem eu mais esperava respeito foi a primeira a não me apoiar."

Torcedora do São Paulo desde 2000, quando viu Kaká jogar e começou a entender as regras e as escalações, a assistente operacional de 24 anos foi ao estádio pela primeira vez em 2005. Desde então, costuma ir aos jogos com primos e relata que as pessoas que conheceu lá sempre foram gentis. "Acredito que, mais do que nunca, a mulher tem ganhado espaço no cenário esportivo. Nossa presença tem sido maior nas arquibancadas e bares, mas a luta continua."

Torcedoras Unidas FC

Aline tem companhia nessa batalha. A jovem conheceu, por meio de publicações nas redes sociais, um movimento que lhe traria amigas e companheiras de jogo. O São PraElas surgiu a partir de uma mobilização de mulheres em redes sociais criticando a falta de materiais esportivos femininos. Batizado inicialmente de São Paulinas Uniformizadas, o grupo ganhou visibilidade e se expandiu. Hoje, contando os grupos de Whatsapp, são 700 meninas.

Elas costumam se reunir nas redondezas do estádio cerca de duas horas antes da partida e, depois, vão juntas ao jogo. "Muitos nos apoiam, porém o machismo ainda é grande. Já escutamos homens falando que nunca iriam permitir que a filha deles fosse parte do grupo", diz a agente de atendimento Larissa Costa, uma das administradoras do movimento.

"Ouvimos cantadas absurdas e vergonhosas e tem quem ache que fazemos isso por imagem. Na verdade, estamos lutando por mulheres que não têm companhia ou que têm medo", diz Larissa. A torcida feminina tricolor não é a única a fazer barulho nos estádios paulistanos. Diversos grupos caminham nessa direção e estão ajudando a mudar a cara e o ambiente dos jogos de futebol.

Entre eles está o Movimento Alvinegras, criado para conectar torcedoras corintianas que não tinham companhia para assistir aos jogos e nos trajetos de volta para casa. "Os horários noturnos dificultam. Chegar de madrugada é perigoso", diz Alana Takano, idealizadora do Movimento.

"Percebemos que, normalmente, elas precisam de incentivo e, muitas vezes, ele vem de um homem", diz. Ela própria foi estimulada pelo namorado e pelo pai, palmeirenses, que um dia a questionaram sobre o porquê de não frequentar o estádio. Passou, então, a assistir aos jogos com a irmã e logo a atividade se tornou habitual.

No entanto, o espaço feminino ainda é limitado. "Vivemos um preconceito mascarado. Os homens se sentem no direito de gritar conosco quando discordam de algo que falamos, nos taxam de louca e falam que tudo é mimimi", diz Alana. Embora façam críticas, a jovem ressalta que o movimento não foi criado com esse propósito. "Queremos ir ao estádio, exercer nosso direito de torcedoras. E a melhor forma de fazer isso é estar presente nesses espaços."

Proibido pra elas

A presença tímida de mulheres nos estádios brasileiros é significativa, mas em outros países é ainda mais alarmante. O caso mais simbólico é o do Irã. Em setembro deste ano, a jovem de 29 anos Sahar Khodayari ateou fogo no próprio corpo após ser processada por um tribunal religioso em Teerã por se disfarçar de homem e tentar entrar em um estádio. O país proíbe a participação de mulheres e meninas em jogos de futebol.

Torcedora do Esteghal Teerã, ela corria o risco de passar seis meses na prisão por tentar assistir ao jogo do seu time contra o Al-Ain, dos Emirados Árabes Unidos. Na opinião dos clérigos iranianos é pecado que as mulheres assistam "homens seminus jogando". O episódio provocou revolta na população local e, quase 40 anos depois da Revolução Islâmica, no dia 10 de outubro, elas foram autorizadas a assistir legalmente a um jogo no país.

Apesar da vitória da seleção masculina iraniana por 14 a 0 dentro de campo, fora dele as conquistas individuais ainda são tímidas. Apenas homens podem comprar ingressos e, para essa partida especificamente, as mulheres tiveram que sentar em um lugar reservado.

"Aqui o preconceito é muito velado", contrapõe a educadora Tainá Shimoda, uma das fundadoras do movimento de torcedoras do Palmeiras VerDonnas.

"Não acho que é lugar mais tranquilo do mundo, mas me sinto segura", diz. No entanto, o movimento surgiu após duas torcedoras palmeirenses terem sido hostilizadas no metrô por corintianos. Ela conta que hoje são quase 800 mulheres integrando o movimento e que várias delas passaram a frequentar os estádios após se sentirem mais seguras.

Assim como outros movimentos do tipo, o VerDonnas se tornou um refúgio para as torcedoras evitarem a violência e um canal para expor o que passam. "Criamos uma rede de apoio. Graças a isso, já vimos inúmeras pessoas indo ao estádio pela primeira vez e amizades surgindo nos campos e na vida", diz Larissa Botelho, uma das administradoras do grupo.

Embelezando o estádio?

A estudante de engenharia elétrica Larissa Brandão Botelho começou a acompanhar o time por influência do pai. "Ele sempre trabalhou muito e ficava pouco em casa. Aproveitava esses momentos para assistir futebol. Entendi que, se demonstrasse interesse naquilo, teríamos um assunto em comum e o pouco tempo que tínhamos juntos seria melhor."

Ela conta que, em uma ocasião, após criticar uma jogada em voz alta, um torcedor falou "cala a boca, você é mulher e não sabe o que está falando!". Em outra, estava no estádio com a mãe e o namorado na primeira fileira da arquibancada superior do Allianz Park, e um homem ficava gritando para ela se sentar. "O estádio inteiro estava de pé", se justifica.

Em certo momento, o mesmo torcedor xingou Larissa. E o bate-boca começou. Larissa relata que o desentendimento continuou até a mãe dela chamar a polícia. "Neste momento, saíram minha mãe, o cara e o meu namorado com a polícia. Eu fiquei lá, sozinha, e ouvi coisas absurdas. Falavam 'ele tinha que ter socado essa vagabunda, ela caia, morria e nunca mais vinha encher o saco'."

"Passei pela situação mais vergonhosa da minha vida de torcedora, mas isso não me impediu de continuar indo aos jogos", diz.

"Homens ainda acham que futebol é coisa de homem. Que as mulheres estão ali procurando homens", afirma a auxiliar administrativa Stefani Coutinho, fundadora do movimento Tricoloucas, que reúne torcedoras do Bahia. A paixão pelo time nasceu antes dela própria. A mãe ia ao estádio grávida e, até ter idade para ir desacompanhada, Stefani acompanhava os tios.

Criou o grupo porque queria encontrar companheiras de torcida. Ela conta que, mesmo juntas, ainda não conseguem sossego em várias situações. "Estávamos na arquibancada quando um cara falou 'quero assistir ao jogo no meio das mulheres bonitas que vêm embelezar o estádio'. Uma das meninas disse que não, e o cara não gostou da resposta. Começou a nos xingar e, de longe, mandava beijos e pegava nas partes íntimas", conta.

Buscando diminuir esses acontecimentos, o time do Bahia criou a campanha #medeixetorcer, que pede respeito às mulheres que frequentam estádios de futebol. Stefani conta que o clube escutou as integrantes do Tricoloucas para ajudar no conteúdo. Um sinal de que, mesmo a passos lentos, as torcedoras agora conquistam uma voz num ambiente tradicionalmente masculino.